Entrevista: Luiz Renato Pucci Jr.
Doutor em Ciências da Comunicação pela USP-ECA, professor do Mestrado
em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi, Renato Luiz Pucci Jr é o autor
de O Equilíbrio das Estrelas: Filosofia
e Imagens no Cinema de Walter Hugo Khouri (Annablume, 2001), de Cinema Brasileiro Pós-moderno: o
Neon-Realismo (Sulina, 2008), além de artigos sobre cinema e ficção
televisiva. Na obra dedicada ao diretor paulistano, o professor esmiúça as
fontes filosóficas encontradas na filmografia de Walter Hugo, que é homenageado este mês com mostra
exclusiva na Vila das Artes, idealizada e promovida pelo Grupo 24 Quadros. Nessa
pequena entrevista, Pucci oferece importantes elementos para, por um lado, ajudar na compreensão da importância da obra e, por outro, dimensionar a sua importância no âmbito da história do cinema brasileiro, ainda por ser (re) descoberta
Renato Luiz Pucci Jr: "Basta que se assistam a filmes de Khouri e de outros
cineastas brasileiros deixados de lado para que se enxergue a necessidade de
uma revalorização".
24 Quadros: Para mim, Walter Hugo Khouri, ao
lado de artistas como Luís Sergio Person, foi um realizador à parte no panorama
da história do cinema brasileiro. Sua perícia em termos de fotografia e técnica
narrativa, a sofisticação com a qual ele lidava com os temas que o obsedavam, o
universo no qual se desenrola a maior parte das suas estórias e sua coragem em
explorar gêneros pouco comuns na tradição cinematográfica brasileira – incluso
a ficção científica – sem dúvida distinguem-no de outros realizadores bem mais
conhecidos e celebrados. Entretanto, para boa parte das novas gerações, ele é
um ilustre desconhecido e parece haver pouca simpatia e boa-vontade em se
realizar exibições de seus trabalhos ou pesquisas a respeito da sua vida e
obra. Você é uma exceção a essa regra. Por que você se interessou pela obra de
Walter e como você situaria esse cineasta numa possível revisão crítica ou
antologia do cinema brasileiro?
Luiz Renato Pucci Jr: Eu havia acabado de me formar em
Filosofia quando assisti a um filme do início da carreira de Khouri, Estranho Encontro (1958). Pressenti
então que questões filosóficas estavam nas entrelinhas daquela história aparentemente
despretensiosa. Revi Noite Vazia (1964)
e a mesma intuição se repetiu em relação àquela trama de dois executivos às
voltas com garotas de programa. Críticos de cinema já haviam notado um sentido
filosófico na filmografia do cineasta, mas nenhum deles definiu qual seria a
filosofia subjacente. Procurei então todos os filmes do cineasta, fiz algumas
entrevistas com ele (que, por sinal, me recebeu com infinita simpatia) e um dia
comecei a desenvolver um projeto de pesquisa em que tentava elucidar o teor
filosófico dos filmes. Em resumo, há realmente uma substância filosófica na
obra de Khouri, uma reflexão de caráter pessimista, com raízes em Schopenhauer,
sobre problemas que assediam a vida de qualquer um que se ponha a pensar. Após
a publicação de meu livro sobre Khouri, recebi contato de diversos jovens
pesquisadores espalhados pelo Brasil, do Rio Grande do Sul ao Piauí,
interessados também na obra do cineasta. Cada um deles desenvolveu uma pesquisa
interessante, materializada em dissertações e artigos. Apesar disso, eu diria
que a história do cinema brasileiro precisa ser inteiramente revista, de modo
que apareçam não apenas nomes e filmes excepcionais, como também aqueles que foram
populares em sua época, quase todos hoje esquecidos ou pouco lembrados. Tanto
na obra de Khouri quanto em outras filmografias, há infinitos elementos a serem
pesquisados, outro tanto a se revalorizar, inclusive pelos cinéfilos.
24 Quadros: Grosso modo, a obra de Walter Hugo
Khouri costuma ser dividida entre uma fase de filmes “de arte” e outra voltada
à pornochanchada. Você acredita que tal divisão seja válida ou, por outro lado,
seria mais apropriado se falar numa continuidade e complementação entre uma
fase mais “séria” e outra mais “ousada”, por assim dizer?
Luiz Renato Pucci Jr: É possível que associações entre
certos filmes de Khouri e a pornochanchada aconteçam porque as pessoas não
conhecem os filmes por ele dirigidos ou porque não saibam o que foi a
pornochanchada. Na primeira metade dos anos 1970, vários títulos da filmografia
de Khouri sugeriam erotismo: As Deusas (1972),
O Último Êxtase (1973) e O Desejo (1975) são exemplos dessa
característica da época – os títulos prometiam mais do que havia nos filmes.
Nenhum desses filmes de Khouri tinha histórias ou mostrava situações
sexualmente apelativas. Todos eram narrativas sérias em torno do que obcecava o
cineasta, ou seja, os problemas existenciais e a conexão deles com o erotismo e
a sexualidade como possíveis saídas para a angústia, porém sempre frustradas. Foram
cinco longas-metragens, de 1970 a 1975, que constituíram fracassos de
bilheteria. A carreira de Khouri chegou a estar em perigo. Essa história está
contada em Paixão e Sombras (1977), em
que Marcelo é um diretor de cinema às voltas com a falta de público, de
recursos e de profissionalismo, além da provável saída de sua atriz principal (interpretada
pela Lilian Lemmertz), que estava para ser contratada para fazer uma telenovela
e, por isso, abandonaria as filmagens. Paixão
e Sombras é um filme tão extraordinário quanto esquecido. Ele revela o
dilema de Khouri: fazer filmes herméticos ou fazê-los com algum apelo para o grande
público. Então Marcelo resolve fazer um filme sadomasoquista, mesmo que com um clima
meio surrealista, irônico. Ora, algo assim apareceu no filme seguinte, As Filhas do Fogo (1978), um terror, com
cenas de forte erotismo para a época, mas principalmente em O Prisioneiro do Sexo (1979) e Convite ao Prazer (1980). Nessas duas
produções, Khouri se associou a um produtor da Boca do Lixo, o Antônio Galante,
que sabia dos ingredientes para atrair o público de então: corpos femininos,
situações maliciosas. Contudo, não eram pornochanchadas, que eram comédias
eróticas. Khouri nunca fez nada nesse gênero. Todos os filmes daquele período continuavam
a desenvolver questões existenciais. Dois deles, inclusive, Eros, o Deus do Amor (1981) e Amor Estranho Amor (1982), foram filmes
de excepcional qualidade estética e profundidade narrativa. Enfim, é preciso
conhecer melhor tanto os filmes do cineasta quanto o cinema brasileiro.
24 Quadros: Você acha que Walter Hugo poderia ser
considerado um personagem maldito da história do cinema brasileiro e que sua
obra, tal como a de outros realizadores, como José Mojica Marins, ainda espera
o momento de ser redescoberta? Por que é tão difícil acessar o seu trabalho
atualmente?
Luiz Renato Pucci Jr: Khouri teve enorme prestígio
artístico e fama até o final dos anos 1960. Noite
Vazia e O Corpo Ardente (1966) eram colocados pela crítica entre os dez
melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Depois, foram deixados de lado,
substituídos por filmes com sentido político ou de crítica social, algo bem
próprio daquela época de acirramento da luta política entre ditadura militar e
grupos de esquerda. Em situações assim, é comum que pessoas que não se coloquem
decisivamente a favor de um lado ou de outro sejam vistas como perigosas ou
reacionárias, mesmo que não o sejam. Uma pesquisadora do Rio Grande do Sul, a
Helena Stigger, tem mostrado um fundo social e político nos filmes de Khouri da
época da ditadura, inclusive Noite Vazia.
É claro que nos anos de chumbo não bastava um discreto fundo social para
receber o aval da crítica de esquerda. Pois bem, acabou a ditadura, mas a
recuperação do prestígio é difícil porque os filmes pouco circulam, ao
contrário daqueles que ganharam prestígio na época anterior. Enfim, o processo
é lento, mas não terminou. Mojica mesmo já teve o seu prestígio recuperado, com
a publicação de pelo menos um livro importante a seu respeito e a conquista de
uma nova legião de fãs. Basta que se assistam a filmes de Khouri e de outros
cineastas brasileiros deixados de lado para que se enxergue a necessidade de
uma revalorização.
24 Quadros: Um dos fatos mais estranhos a respeito
de Walter Hugo é que, aparentemente, ele não fez escola no Brasil, ao contrário
de cineastas como Glauber Rocha, por exemplo. De certa forma, essas duas
figuras personificam dois modos de se fazer cinema: um mais afeito à narrativa
clássica e ao rigor técnico e outra se ligando ao experimentalismo e não
atribuindo tanta importância à técnica. Considerando que nossa produção
cultural em geral é marcada pela espontaneidade criativa e certa rejeição a
processos mais racionais de elaboração, Walter Hugo pode ter sido vítima do seu
próprio perfeccionismo?
Luiz Renato Pucci Jr: Realmente, não há um cineasta
brasileiro que se tenha colocado na mesma linha de realização de Khouri.
Existem filmes aqui e ali, ou mesmo cenas dispersas, em que se evidencia alguma
relação com aquela angústia existencial típica de Khouri, às vezes somada à
problemática da sexualidade. Acredito que o ponto principal para a inexistência
de seguidores tenha sido o sentido autoral a que Khouri aderiu: fortemente
pessoal, com uma concepção de mundo própria. É diferente do que aconteceu com
Glauber Rocha, que, mesmo podendo ser considerado um autor, compartilhava uma
visão política de esquerda que conquistou muitos adeptos. O discurso político de
Glauber Rocha não pode ser chamado de simplista, ingênuo ou maniqueísta, e seus
filmes não eram feitos ao acaso, havia domínio técnico também. Uma pesquisadora
de São Carlos, a Josette Monzani, publicou um livro mostrando que Deus e o Diabo na Terra do Sol teve
cinco versões de roteiro, ao longo de vários anos, com alterações profundas entre
elas. Mesmo antes disso, outros mostraram o rigor de composição de Rocha, que era
diferente do que existia em Khouri. Enfim, o perfeccionismo não é a questão,
até porque Fernando Meirelles, por exemplo, também é um perfeccionista e, no
entanto, já deixou marcas em outros diretores. Tenho diante de mim uma foto em
que, no lançamento de meu livro sobre Khouri, estou ao lado dele próprio e de
Joel Pizzini, então um jovem cineasta. Pizzini, como outros, admira Khouri,
porém seguiu uma linha própria, o que não deixa de ser muito bom.
Entrevista
conduzida por Gabriel Petter
Para quem quiser entrar em contato com o Luiz Renato Pucci Jr: renato.pucci@gmail.com
Interessante essa análise da obra do cineasta Walter Hugo Khouri do ponto de vista filosófico.
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