ENTREVISTA - Hanna Korich e Laura Bacellar
Produtoras de Cassandra
Rios: A Safo de Perdizes, as paulistanas Hanna Korich (que
também assina a direção do filme) e Laura Bacellar trilharam o árduo caminho de
realizar um documentário sobre a escritora que foi extraordinária em diversos termos. Fenômeno editorial - a
primeira mulher a vender um milhão de livros no Brasil - e pioneira na
abordagem do desejo lésbico na literatura nacional, Cassandra Rios (1932-2002) deixou poucos registros
audiovisuais sobre sua arte provocativa ou sobre os revesess sofridos ao longo da sua trajetória no mundo das letras por conta do moralismo dos (des) governos militares, corroborado por uma sociedade que ainda hoje enfrenta problemas para aceitar a diversidade sexual. Em entrevista ao blog do Grupo 24 Quadros, as realizadoras e co-fundadoras da Malagueta, a primeira editora latino-americana voltada ao
público lésbico, falam sobre a desafiante experiência de levar ao público a história de uma personagem que já não se encontra fisicamente presente, sobrevivendo, entretanto, na memória de amigos e parentes e, claro, na vasta bibliografia que a escritora mais censurada do Brasil legou à posteridade, a imensa maioria, infelizmente, há muitos anos esgotada. Por que será?
Cassandra
Rios (1932-2002) é relembrada no documentário CASSANDRA RIOS, A SAFO DE
PERDIZES (2013), de Hanna Korich
Por Gabriel Petter
"O livro de Cassandra Rios traz mensagem negativa, psicologicamente falsa em certos aspectos de relacionamento, nociva e deprimente, principalmente pela conquista lésbica da heroína junto à madrasta e o duplo suicídio final." [Parecer da analista que determinou a censura de uma das obras de Cassandra Rios, “Copabacana Posto 6 — A madrasta”, publicado em 1972].
Se para boa parte - e sempre queremos acreditar,
a maior - dos jovens de hoje uma sentença desse nível, em relação a uma obra
artística, soa absurda, na década de 1970, auge da repressão política
instaurada pelo AI-5 (a ditadura escancarada, no dizer de Élio Gaspari), isso
era rotina. Frequentemente, a popularidade correspondia à vigilância cerrada
dos órgãos oficiais de censura dos (des) governos militares. Isso, obviamente,
se o (a) artista popular em questão não fosse algum rei católico e
familiar que troca suas convicções pessoais por alguns milhões a mais na conta
corrente.
Não era o caso de Odete Rios. Lésbica, tímida e reservada, a filha de imigrantes espanhóis que deram o fora do Velho Mundo antes que estourasse a Revolução que entronaria Francisco Franco por décadas no poder encontrava refúgio na literatura, atividade cara a pessoas que, como ela, buscavam reconhecimento, mas não desejavam se expor em demasia.
Não era o caso de Odete Rios. Lésbica, tímida e reservada, a filha de imigrantes espanhóis que deram o fora do Velho Mundo antes que estourasse a Revolução que entronaria Francisco Franco por décadas no poder encontrava refúgio na literatura, atividade cara a pessoas que, como ela, buscavam reconhecimento, mas não desejavam se expor em demasia.
Odete? É provável que o leitor não reconheça, por trás desse nome de vovozinha madrilena, a mulher que alimentou as fantasias de gerações de lésbicas (e héteros, em alguns momentos) e que deu muito trabalho aos encarregados da manutenção da moral e dos bons costumes de uma sociedade que entupia o bolo do crescimento econômico de fermento para dividi-lo depois, segundo a brilhante analogia com a qual o ex-ministro da fazenda, Delfim Netto, traduzia o caráter perverso e excludente do chamado Milagre Brasileiro. Seja por discrição, prudência, ou por não gostar do primeiro nome mesmo, Odete emprestou o nome da deusa grega a quem Apolo ensinou os segredos da profecia. E, como convém à tentação analogista de qualquer resenhista que se preze, assim como sua xará mitológica, Cassandra Rios (1932-2002) foi desacreditada em seu esforço de mostrar aos agentes da censura que, apesar de tudo, as mulheres tinham desejos (inclusive em relação a pessoas do mesmo sexo) e continuariam se amando, houvesse oposição ou não.
É claro que assumir tal verdade não foi algo simples. O epíteto “A autora mais censurada do Brasil”, comumente associado à Cassandra, mais do que uma estratégia de marketing editorial, expressa à perfeição o que era – e ainda é – ser artista e homossexual num país que mal se livrou das trevas do autoritarismo que marcou a maior parte da sua história republicana e que foi definitivamente consagrado no Golpe Militar de 1964, que completa cinquenta anos nesse dia 31 de março.
Cassandra não era de segurar bandeiras. Neguemos, portanto, qualquer atributo super-heroico a uma mulher que queria, antes de tudo, fazer aquilo que gostava e viver livremente sua sexualidade. Como tantos outros, artistas ou não. Entretanto, a perseguição dos militares foi implacável. Para se ter uma ideia, pelo menos 33 dos seus livros foram censurados, quando ela ainda contava 36 títulos na sua bibliografia. É inevitável, assim, abordar a vida e a obra da escritora sem levar em consideração o difícil contexto histórico no qual a sua parte mais substancial se desenrolou, o que, de fato, lhe confere uma dimensão extraordinária. Quase ficcional. Um prato cheio para expressões artísticas como o cinema.
Todavia, não é bem uma ficção o que os fãs e admiradores da escritora encontrarão em Cassandra Rios: A Safo de Perdizes (BRA, 2013). O média-metragem realizado pelas paulistanas Hanna Korich e Laura Bacellar, fundadoras da Editora Malagueta, a primeira da América Latina voltada exclusivamente ao público lésbico, traz depoimentos que ajudam o espectador a conhecer melhor a mulher por traz do pseudônimo que mereceu tanta atenção da censura oficial. Com depoimentos de parentes e amigos, aos poucos é possível construir uma imagem de uma mulher corajosa porque teve de sê-lo (tímida como era!), talentosa porque era da sua natureza e, claro, odiada por ostentar sua verdade nas fuças de uma sociedade hipócrita que convivia - e ainda convive - muito bem com as contradições de um regime socioeconômico cujo princípio fundamental é excluir/marginalizar para dominar. A entrevista a seguir está sendo especialmente publicada na noite de hoje, dia 31 de março, como parte das ações em torno da memória dos 50 anos do golpe militar de 1964, lamentável fato histórico que sacrificou gerações de brasileiros e cujos efeitos sentimos (com calafrios) até hoje.
24 Quadros - O primeiro contato que tive com Cassandra Rios foi casual, num sebo que eu frequento há anos, por meio de uma belíssima edição de A Santa Vaca, que eu não consegui parar de ler. Bom, estamos falando de uma pessoa que “descobriu” a escritora já nos anos 2000 e que foi fulminantemente tomada por sua literatura, picante até para os padrões atuais. Imagino o impacto que ela provocou entre a garotada de gerações que não tinham acesso a coisas como a internet e encontravam na literatura um meio de estimular seu imaginário. Como foi que você chegou à Cassandra e qual foi a influência que a safo de Perdizes teve na sua vida?
Hanna Korich - [Só] Descobri Cassandra Rios nos anos 1990,
infelizmente. Comprei vários livros da autora em sebos de São Paulo e me tornei
sua fã. Fiquei muito impressionada com a visibilidade das lésbicas na sua
escrita e com a sua ousadia em descrever abertamente e sem qualquer pudor o
sexo entre mulheres. Ficava imaginando todas as dificuldades encontradas pela
Cassandra para publicar esses livros e desde o primeiro momento admirei sua
coragem, enfrentando a sociedade brasileira dos anos 40/50/60/70/80 ,
moralista, hipócrita, extremamente preconceituosa e homofóbica, até hoje. Na minha
vida, Cassandra Rios continua sendo muito importante, daí a realização desse
documentário/tributo para a escritora que considero pioneira em retratar as
lésbicas nas letras brasileiras, além de mostrar a mulher como ser sexual. Uma
verdadeira papisa da literatura lésbica.
24 Quadros - Um dos maiores desafios na elaboração de um documentário sobre personagens falecidas é, por um lado, fazer com esta pessoa surja na fala dos entrevistados e, por outro, encontrar material de arquivo suficiente para dar uma ideia de quem foi essa mesma pessoa a quem não teve a oportunidade de conhecê-la. É sabido que Cassandra deu raríssimas entrevistas e que parece ter sempre havido uma espécie de tabu a seu respeito nos círculos da cultura oficial, tanto pelo caráter popular da sua literatura quanto por sua condição de homossexual. Como você conseguiu obter os materiais e os depoimentos que compõem o documentário? Quanto tempo demorou a pesquisa e como foi equacionar essas informações todas, a fim de passar uma imagem o mais fiel possível da artista?
Hanna Korich - O material foi resultado de uma vasta pesquisa
sobre a autora, com a ajuda de algumas pessoas que conheceram Cassandra
pessoalmente. Com relação aos depoimentos, convidei várias pessoas que foram
importantes na vida da autora e apenas algumas concordaram em gravá-los, mas
penso que o documentário conseguiu atingir um conteúdo rico em informações
sobre aspectos importantes na trajetória da Cassandra. A entrevista com o Jô
Soares que está inserida no filme foi gentilmente cedida pelo SBT, com
autorização do próprio Jô. A equipe do SBT foi muito atenciosa comigo. A
pesquisa levou aproximadamente oito meses e o processo de produção, contatos
com os entrevistados, obtenção de fotografias, documentos, etc., mais quatro
meses. Consegui concluir o filme em cerca de um ano. O processo mais
trabalhoso foi editar o texto, mas penso que o resultado ficou muito bom e
atraente.
24 Quadros - Foi difícil obter recursos para a produção do
documentário? Você acha que o fato de o filme retratar uma escritora lésbica
e imoral – segundo os padrões de moralidade da censura oficial – de
certa forma dificultou a feitura do longa?
Hanna Korich - O ProAc [Programa de Ação Cultural] e a Secretaria
de Cultura de São Paulo patrocinaram o filme, através de um edital para
projetos LGBTT de 2012. Os recursos financeiros foram apertados e contei com a
compreensão de várias pessoas que trabalharam no projeto para viabilizar a
conclusão do documentário.
24 Quadros - Você também atua como editora e, nessa condição,
deve procurar sempre dimensionar os lançamentos da sua empresa de um ponto de
vista econômico e artístico – afinal, infelizmente, não dá para publicar livros
e nem manter editoras sem dinheiro. Baseando-se em sua experiência no ramo,
como você avaliaria o sucesso de uma escritora que descrevia cenas ousadas de
sexo homo e heterossexual entre o grande público? Você acha que escritoras
desse tipo ainda podem vingar nos dias atuais?
Laura Bacellar - A Cassandra aproveitou bem a configuração da sua
época. Como quase não havia informação disponível sobre sexo e relacionamentos
sexuais, o fato de ela os descrever com clareza tornou sua obra muitíssimo
atraente para um público enorme. Ela foi inteligente em perceber essa carência
e aproveitá-la para contar suas histórias. Todo escritor que faz isso consegue
chegar a mais gente, ser mais lido. É a compreensão do público, do que um
grande grupo de gente necessita (mas às vezes nem sabe disso), que ajuda alguém
a virar um fenômeno como foi o caso dela.
Hoje alguém como ela se daria bem, sim, se soubesse
ler a necessidade do público de agora, mas não reproduzindo o que Cassandra
escreveu. Não há mais tanta necessidade de se saber sobre sexo, como ele é e
acontece, mas claro que há ainda muito a se falar sobre isso. Veja-se o
espalhafato de 50 tons de cinza! As necessidades do público leitor de 50
tons são outras do que as do público de, digamos, A paranoica,
sucesso nos anos 80. Eu arriscaria que no caso mais recente vemos mulheres
carentes de sexo e parceiros em busca de um príncipe encantado rico que as
satisfaça, enquanto que no sucesso de Cassandra os e as leitoras buscavam
compreender (e assim ver validadas as suas próprias, secretas e vergonhosas) a
variedade de maneiras com que uma mulher podia se relacionar sexual e
emocionalmente.
24 Quadros - No teaser de A Safa de Perdizes há um
trecho de um depoimento da atriz e escritora Nicole Puzzi, uma das estrelas da
Pornochanchada e dos dramas eróticos de Walter Hugo Khouri. Achei engraçado a maneira
como ela declarou que as pessoas recomendavam que ela se afastasse de Cassandra
Rios em eventos públicos, sobretudo porque Nicole, como musa de produções imorais
(risos) da cinematografia nacional, também devia ser alvo do mesmo tipo de moralismo
farisaico, que ainda parece grassar em nossa sociedade, apesar da
redemocratização. Você acredita que isso, de certa forma, ainda limita o acesso
à obra de Cassandra Rios?
Hanna Korich - Não! o que dificulta o acesso à obra da Cassandra é
a falta de informação, desconhecimento, ignorância e desinteresse por parte dos
editores brasileiros em republicar seus livros.
24 Quadros - Uma coisa é conhecer alguém de obra, outra, bem
diferente, é conhecer o ser humano por trás da mesma. Quem foi a mulher
Cassandra Rios que você descobriu durante o processo de realização de A Safo
de Perdizes?
Hanna Korich - Descobri que apesar de tímida era muito
namoradeira, terrível mesmo! era uma pessoa muito querida e respeitada.
24 Quadros - Atualmente como anda a obra de Cassandra Rios? Ela
tem muitos títulos, mas a grande maioria encontra-se fora de catálogo. Quem
detém os direitos da sua obra e por que não há interesse de lança-la?
Hanna Korich - Cassandra só tem quatro livros reeditados: Eu sou uma
lésbica, As Traças, Uma mulher diferente e Crime de Honra
( o primeiro da Azougue e os demais pela Brasiliense). A sobrinha dela, Liz
Rios, detém os direitos da sua obra, tem interesse em novas publicações, mas o
mercado editorial, parece que não.
Hanna Korich, diretora de CASSANDRA
RIOS: A SAFO DE PERDIZES (Arquivo Pessoal)
24 Quadros - Atualmente, filmes com temáticas pertinentes ao
universo homossexual vem ganhando forte destaque em festivais internacionais,
alguns dos quais reservam premiação específica para produções GLBT. Você
acredita que, de certa forma, isso pode indicar uma maior aceitação e
compreensão do público em relação à problemática das minorias sexuais ou pode
funcionar como uma espécie de estratégia segregacionista, na medida em que
estamos na era do politicamente correto, onde a ideia de tolerância – que, de
certa forma, soa como devemos suportar o diferente – ganha uma conotação
positiva, mas, de qualquer forma, reforça as diferenças entre os grupos sociais
e (em consequência) tende à hierarquização?
Hanna Korich - As iniciativas cinematográficas, da mesma forma que
a literatura, são representativas e fundamentais para a cultura LGBTT, para que
a mesma se torne visível. Revelam nossas particularidades e, o mais
importante, tanto os [nossos] filmes como nossos livros afastam os subterfúgios
e a parafernália discriminatória típicas da nossa cultura, quando o assunto são
minorias.
Apresentar personagens, lésbicas, gays, trans etc.,
de forma natural, declarada e sem preconceito, resolvidas quanto à sua
sexualidade, sem grandes conflitos internos (pelo menos quanto à sua orientação
sexual) é [algo] representativo e fundamental não só para a visibilidade, mas
também para combater o preconceito.
24 Quadros - Cassandra era inegavelmente uma excelente
escritora, mas deu o azar de nascer no tempo e no país errados. Na sua opinião,
a intelligentsia nacional deve uma revisão da obra da artista? Qual
seria o posto de Cassandra numa possível nova história da literatura
brasileira?
Laura Bacellar - Com certeza Cassandra merece ser revista pela
intelectualidade, que mostra ainda hoje um preconceito indesculpável para com
alguém que abriu tantos fronts, foi pioneira de tantas formas
diferentes. Ela desafiou o status quo, brincou com estereótipos, detonou
as expectativas em relação às mulheres, incluiu temas bem complicados – como
liberdade de expressão, de identidade, de comportamento sexual – em narrativas
que o público médio conseguia entender, fez várias experiências com
personagens, linguagens, construção não linear de seus romances... Foi uma
escritora mesmo, muito produtiva, criativa, ousada. É um total absurdo gente
que nem a leu classificá-la de rasa e sequer se deter sobre sua obra vasta e
variada.
24 Quadros - Infelizmente, a maior parte dos filmes realizados
em nosso país não chegam às salas de cinema. Como você está divulgando seu trabalho, já que um dos seus objetivos declarados em relação ao
documentário é apresentar Cassandra às novas gerações?
Hanna Korich - Infelizmente, não tenho recursos para contratar
uma distribuidora para o filme. Estou fazendo um trabalho independente,
entrando em contato com espaços independentes e festivais de cinema para
divulgar o filme. Além disso, com autorização do ProAc o DVD está a venda por
R$5,00 no site www.editoramalagueta.com.br
Ficha Técnica
Cassandra Rios: A Safo de Perdizes
Brasil/2013
Produção:
Laura Bacellar e Hanna Korich
Locuções:
Nanda Cury e Hanna Korich
Edição de
som: Thiago Schulze
Colorização:
Igor Yano Vieira
Assessoria
de imprensa: Paco Llistó & Midiatix Mídias Sociais
Trilha
musical: Laura Finocchiaro e Vicente Falek (canções originais baseadas em
poemas de Cassandra Rios)
Direção:
Hanna Korich
62 min
Entrevista conduzida por Gabriel Petter. Essa postagem é dedicada a todos aqueles que sofreram perseguições durante o infame regime militar no Brasil (1964-1985) e que sofrem até hoje com a censura, o mais eficiente e covarde instrumento utilizado por governos de todos os matizes (democráticos ou não) para tentar limitar o poder de influência de obras artístico-culturais. Publicado na noite do dia 31 de março de 2014, quando completam-se cinquenta anos da quartelada de 1964, que se transformou em (des) governos autoritários por mais de duas décadas e cuja herança ainda é visível em muitos aspectos do Brasil atual.
Sr. Gabriel Petter, os créditos estão incompletos.
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