JOSÉ LEWGOY – O
olhar mais profundo e onipresente do cinema brasileiro.
“Sou
uma mistura de um personagem de Alice, aquele gato que sorri sempre, o Cheshire
cat, que vai desaparecendo todo até ficar o sorriso, e o Mersault, de O
Estrangeiro, do Camus. Quem quiser saber como eu sou, quem eu sou, leia Alice
no País das Maravilhas e O Estrangeiro” (José Lewgoy)
A epígrafe acima revela a toda a
complexidade de definir seu autor, o multifacetado ator José Lewgoy. Resumir
toda esta carreira pelos seus notórios papéis de vilão, por seu mau humor ou
suas opiniões ácidas sobre alguns diretores com quem trabalhara; é um grande
equívoco. Justamente para alguém que exercia o ofício de ator com tanta
seriedade. Era um ator extremamente técnico, expressivo e criativo. Ao se
despedir deste mundo, em fevereiro de 2003, Lewgoy encerrou uma carreira de 56
anos, com mais de cem filmes e dezenas de participações na TV.
Em 2009, o diretor Cláudio Kahns lançou o
documentário “Eu eu eu, José Lewgoy”,
que apresenta a trajetória profissional do ator nas diversas fases do cinema e
televisão, por meio de imagens de arquivo e depoimentos de familiares e pessoas que trabalharam com ele no cinema e
na TV. O documentário apresenta também momentos pitorescos de sua vida: o humor
sofisticado, os desafetos, parte de sua vida pessoal e o profissionalismo.
Através de seus amigos, seu lado egocêntrico transborda. Eis o motivo do título
do filme, surgido do depoimento do ator Paulo César Pereio: “O Lewgoy me ligava
e dizia: 'Eu fiz isso, eu fiz aquilo'. Aí, um dia, eu reclamei: 'Porra, Lewgoy,
você só fala de você mesmo. É tudo 'eu, eu, eu'", lembra Pereio. "Na
ligação seguinte, ele começou diferente: 'Porque ele fez isso, ele fez aquilo'.
Ou seja, ele continuou contando suas coisas com outro pronome pessoal.
Narcisismo puro.
José Lewgoy era o filho caçula de um russo
com uma americana, numa família de oito irmãos. Nasceu em 1920 na cidade gaúcha
de Veranópolis. Já na adolescência, falava italiano, inglês e francês. Formou-se
em Economia, mas nunca exerceu a profissão. Chegou a montar um grupo amador de
teatro em Porto Alegre com amigos e recebeu uma bolsa para estudar Artes
Dramáticas na Universidade de Yale. Depois
de três anos, retorna ao Brasil em 1949.
***
“- José Lewgoy, você deve muito ao cinema brasileiro?
- Não! Eu devo muito por causa do cinema brasileiro!”
Apesar de um extenso currículo na TV (23
novelas, nove minisséries e 14 especiais), Lewgoy, era acima de tudo, um homem
de cinema. Contabilizou 105 participações em produções cinematográficas no
Brasil e no estrangeiro. Começou sua carreira nas telas em 1949 como o
maquiavélico Anjo de “Carnaval no Fogo”, chanchada de Watson
Macedo. Com este filme, iniciava-se uma parceria entre Lewgoy e a dupla
Oscarito e Grande Othelo. Foi antagonista da dupla em vários campeões de
bilheteria da Atlântida, como Aviso aos Navegantes (1950), também
de Watson Macedo, Carnaval Atlântida (1952), de José Carlos
Burle, e Matar ou Correr (1954), de Carlos Manga.
Além dos filmes da Atlântida, ele passou
pelos filmes do cinema francês, do Cinema Novo, da Pornochanchada e do Cinema
da Retomada. Destaque para suas atuações nos filmes “Terra em transe” (1967) de
Glauber Rocha, como o político populista Felipe Vieira; “O Ibraim do Subúrbio”
(1976) de Astolfo Araújo, como o pobre alfaiate Casemiro de Abreu que tinha
mania de grandeza (o próprio Lewgoy considerava sua melhor atuação); e
“Fitzcarraldo” (1982) de Werner Herzog, como o Dom Aquilino. Seu último filme
foi Apolônio Brasil, Campeão da Alegria (2003), dirigido por Hugo
Carvana.
É considerado “o maior vilão do cinema
brasileiro”, mais do que o saudoso e franzino Wilson Grey, outro que encarnou
bem o papel de vilão (com certeza a expressão de Lewgoy amedrontava mais medo do
que a de Grey). O tipo de vilão que Lewgoy construiu era irônico, cínico e
ameaçador. Apesar de receber essa alcunha, é claro percebermos sua
versatilidade nos mais variados papéis que fez. Sabia muito bem colocar
profundidade nos seus personagens, mesmo que fossem pontas. De acordo com o
personagem, ele variava seu olhar e sua entonação de voz.
Possuía um domínio de cena incontestável.
Parecia ter um caso de amor com a câmera. O diretor alemão Werner Herzog disse
“José Lewgoy era uma pessoa que sabia que a câmera o amaria e o tocaria e
sentiria sua pele”. Em cena, temos a sensação de que a câmera o procura. Se o
acha, sua característica física mais marcante se apresenta: seu olhar. Sempre
vivo, intimidando quem quer que ouse a fitá-lo.
José Lewgoy partiu aos 84 anos sem dar
adeus aos inúmeros amigos, à boemia e à solteirice. Sem filhos, apesar do apego
à sua numerosa família, com muitos irmãos e sobrinhos; sua maior herança foi a
galeria de personagens memoráveis na cinematografia brasileira. Narcisista como
era, consciente de seu talento; Lewgoy provavelmente opinaria sobre tudo que
foi falado até aqui sobre ele, usando o bordão de seu personagem mais popular
na televisão, Edgard Dumont de Louco Amor (1984):
“E EU NÃO SEI?” Ou como diria o próprio,
num momento de descontração: “Foi uma delícia!”
Excelente texto.
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