Trash movie: a arte de se fazer um bom filme ruim

É inegável que não é qualquer um que consegue fazer um bom filme, menos ainda um bom filme ruim. O quê? Bom filme ruim?! O contra-senso é apenas aparente. Existe, sim, em meio a uma infinidade de bons filmes (e filmes ruins) os bons filmes ruins, não constituindo estes uma categoria intermediária do tipo "hah, quase foi bom", mas remetendo à frases como "É tão feio que é engraçado" ou, melhor dizendo, "É tão ruim que é bom."

Platonismos e Aristotelismos à parte, a associação íntima entre beleza e virtude vem sendo questionada há muito tempo e não apenas pelos, digamos, desprovidos de beleza socioculturalmente consagrada, mas por pessoas sensíveis o suficiente para perceber que, se não há propriamente "beleza" (compreendida nos termos da estética clássica) nas coisas não belas, subsiste, por outro lado, nessas mesmas coisas, uma doce e imensa liberdade de exercício do lado out da criatividade, sem recair num olhar camp eivado de arrogante comiseração à là Caetano Veloso - o insípido dinossauro da MPB que acha tudo "lindo"... ou não.

Provavelmente essas considerações nem passavam pela cabeça de Edward Davis Wood Jr quando, quase sem dinheiro, invadindo estúdios de filmagem na surdina, escolhendo a dedo um elenco de péssimos atores e cometendo erros primários de direção, produziu, no final dos anos 1950, uma das obras basilares do trash (lixo, em inglês), o inenarrável Plano 9 do Espaço Sideral (Plan 9 from Outer Space, EUA, 1958). Autêntico Orson Welles do trash, Ed Wood, ainda que involuntariamente (pois acreditava verdadeiramente estar realizando uma obra-prima com Plano 9), mostrou que é possível subverter regras e princípios caros ao cinema clássico hollywoodiano sem entediar o espectador. Muito pelo contrário: assistir ao seu filme mais famoso é uma das mais divertidas experiências pela qual qualquer cinéfilo que não se leve tão à sério pode fruir.


Ed Wood: O Orson Welles do cinema B 


Eis um aspecto que salta imediatamente aos olhos quando da assistência de qualquer bom filme trash (sim, também existem os ruins filmes ruins!) estes são imensamente risíveis, despertando a simpatia espontânea do público com sua precariedade nos mais diversos sentidos. Filme-lixo para pensar não é digno nem dos restos de negativo empregados para rodar pérolas como À meia-noite levarei sua alma, de José Mojica Marins. Isso nos leva à função primordial do cinema, desde o seu nascimento, i.e., o puro e simples entretenimento, a despeito (e põe despeito nisso, desculpem o trocadilho!) da pedante suposição de que filmes divertidos são produtos de somenos importância. 

Outro aspecto interessante é que o trash não chega a constituir um gênero, sendo um caso à parte na história do cinema. Se é fácil (pensando em cinema de gênero), por exemplo, identificar um típico western ou um filme de ação, não é tarefa das mais simples estabelecer um gênero propriamente trash, já que este é mais definido por um conjunto de características comuns a qualquer tipo de produção cinematográfica. Daí, por exemplo, autênticos trash movies, dignos de um Zé do Caixão de ouro, serem classificados como terror, suspense etc. Uma perspectiva para compreender esse (sub) gênero pode ser no sentido da atribuição: os filmes não são trash, mas são tornados trash. Isso explica, por exemplo, que mesmo produções de alto orçamento e elenco estrelar, como A ilha do dr. Moreau (que contava com Marlon Brando no elenco) ou, mais recentemente, A Morte do Demônio, tendam a se converter em exemplos do trash em futuro não tão distante. Por outro lado, há, de fato, filmes intencionalmente trash, o que pode ser visto na filmografia inicial de Peter Jackson (sim, o respeitável diretor de O Senhor dos Anéis), que praticamente estilizou o sub) gênero. E, claro, subsiste, entre estes casos extremos, produções que não merecem nem um sorriso amarelo, tamanha a falta de talento como são conduzidas - é preciso ser bom para se fazer um bom filme ruim.

Essas dificuldades conceituais ficam mais evidentes quando lemos alguns artigos a respeito do cinema trash, os quais, muitas vezes precipitadamente, traçam uma historiografia do mesmo e terminam por colocar determinadas obras, alguns até importantes para a história do cinema, lado à lado com filmes de roqueiros que se tornam zumbís ao fumar uma bagana estragada vinda de Marte, por exemplo. Exageros descontados,  talvez seja mesmo impossível entender o cinema trash, mas é até simples compreender sobre o que se está a falar quando se faz menção ao cinema-lixo: maus atores, defeitos especiais, roteiro sem sentido, pobreza técnica, enfim, nada que não esteja presente, em maior ou menor grau, numa infinidade de películas que podem nos fazer rir ou despertar uma imensa ira, sobretudo quando revestidas de um discurso que procura dar um sentido maior ao que foi mal-feito mesmo. Aí nem há o que discutir.

Enfim, os filmes trash não são feitos mesmo para pensar, mas podem se constituir num precioso exemplo e expressão de uma nova sensibilidade e de uma nova estética, uma estética do "feio", sem medo de críticas e sem maiores pretensões, mas, ainda assim, riquíssima de possibilidades. Isto é, uma maneira mais leve e ousada de se fazer cinema, de se relacionar com a arte e a vida. Pena que a maioria dos nossos realizadores na maior parte do tempo se leve tão à sério...

Gabriel Petter

Comentários

  1. Caro Colegas do Cineclube,
    Pecava pelo preconceito em assistir a determinados gêneros de filmes; por exemplo, devo dizer que nunca tinha apreciado filmes cuja temática fosse "BOXES", Vocês fizeram uma amostra e eu gostei muito; também modifiquei meu pensar com relação com relação gênero FAROESTE(?) e também gostei;
    Com relação a amostra de filmes TRASH, espero uma expectativa positiva, afinal, quem se diz cinéfilo - eu não chego a tanto - precisa encarar todos gêneros da sétima arte.
    Finalmente, o que eu gostaria de destacar aqui, com relação a vocês do cineclube, é essa sadia pluralidade e o salutar ecletismo, no engenho das amostras.

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    Respostas
    1. Caro Paulo:

      Sem dúvida a diversidade é uma bênção em qualquer dimensão da vida
      social. Aliás, partimos do princípio que bom mesmo são os filmes,
      independente de gênero, e que, se o público consegue apreciar tanto
      uma das mais refinadas obras do cinema clássico, como uma das mais
      risíveis, é porque, enfim, conseguimos, de alguma forma, colocar
      abaixo a concepção de cultura como um distintivo social, o que gera os
      preconceitos em relação à obras maravilhosas que devem, sim, ser
      fruídas. Não há nada melhor do que se dar ao luxo de não se levar tão
      à sério. Agradecemos muito seu comentário e te aguardamos na mostra de
      hoje.

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