POST-MORTEM: O pior das ditaduras é o que elas fazem com as nossas cabeças
Este é um pequeno ensaio sobre Post-Mortem, o primeiro filme de Pablo Larraín que exibiremos dentro da retrospectiva dedicada a esse grande talento latino-americano da sétima arte
Post-Mortem (2010): a loucura de um período negro
Gabriel Petter
Certa feita, entrevistando um ex-militante de esquerda que sofreu torturas durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985), ouvi algo que, de tão impressionante, parecia ser fruto de uma imaginação prodigiosa. O agora professor universitário e artista dedicado à cultura popular me disse que, durante o tempo em que sofreu diferentes tipos de tortura nas dependências de uma delegacia na capital cearense, "pirou"de tal forma que, no auge das suas alucinações, imaginava que os militares haviam implantado um chip na sua cabeça e que não adiantava esconder nada, pois os mesmos seriam capazes de ler seus pensamentos.
Este é um relato que pode dar a dimensão do que há de pior nas ditaduras, em quaisquer modalidades e em qualquer lugar do planeta: o que elas produzem em nossas cabeças. A loucura dos torturados era mais uma entre tantas outras, que iam do mergulho desesperado no sexo e nas drogas ao anestesiamento dos sentimentos, a uma decisão deliberada de não ver, movida pelo tipo ingênuo de medo que as crianças têm ao pressentirem a presença de fantasmas. Isso quando as pessoas estavam cientes do que estava acontecendo. Outras, pulavam fora do sistema, pura e simplesmente.
Post-Mortem (Idem, CHI, 2010), do diretor chileno Pablo Larraín, envereda por esse tipo de loucura, de uma violência latente, tão perfeitamente expressa por suas personagens. Enquanto Nancy (Antonia Zegers) experimenta um coquetel de experiências político-sociais típicas da época - o sexo promíscuo, o socialismo -, Mario (Alfredo Castro, brilhante!) encarna a frieza de quem não sente o zeitstag que insiste em bater em sua porta, insistentemente. Apaixonado (obcecado?) por Nancy, sua vizinha e dançarina cuja carreira já conheceu dias melhores, Mário, um modesto funcionário do que aqui chamaríamos Instituto Médico Legal, faz de tudo para conquistá-la, sendo capaz, mesmo, de livrar-se de um carro para forçar a manutenção da amada no espetáculo onde Nancy tem de competir com mulheres bem mais jovens. Entretanto, este mesmo homem comete atos de uma crueldade calculada quase antitéticas em relação às convenções do amor romântico. Mário não parece ser um psicopata, mas alguém que é capaz de surtos extremos de amor e ódio, uma ambivalência que é típica de ambientes onde o lema do "cada um por si" ecoa no interior das mentes de cada cidadão constrangido pelo medo da morte ou - pior ainda - da morte em vida.
Pablo Larraín consegue, a partir do desenvolvimento de sequências que, aparentemente, não se fecham,. evocar essa gama de sentimentos complexos, até mesmo em quem não viveu esse período histórico nefasto (o autor do texto, incluso), o que só é possível se testemunhar em obras que são dotadas de uma sensibilidade privilegiada e de pessoas cuja perspectiva histórica não é voltada aos "grandes fatos" - com seu detestável sentido teleológico, como se a história fosse para algum lugar -, mas para a história miúda, das pessoas que de fato a fizeram e a fazem todos os dias. Não há heróis e nem vencedores nas ditaduras de qualquer matiz. Pena que poucos percebam isso e insistam em transformar sua arte num cavalo de batalha ideológico ou, pior ainda, num panfleto de ideais que pretendem reescrever o que já é sobejamente conhecido.
Post Mortem abre a retrospectiva dedicada ao cineasta Pablo Larraín, amanhã, a partir das 18h30min, na Vila das Artes. Rua 24 de Maio, 1221, Centro, Fortaleza.
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