NO: a estranha solidão da vitória e da derrota

O último longa do cineasta Pablo Larraín dedicado ao período ditatorial no Chile é uma autêntica obra-prima do cinema latino-americano contemporâneo. Indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2012, No: Adeus, Sr. Pinochet, será exibido na sexta-feira, dia 22 de novembro, dentro da retrospectiva dedicada ao diretor chileno, um dos maiores nomes do cinema latino-americano contemporâneo
 
 
NO: ADEUS, SENHOR PINOCHET: a vitória e a derrota são solitárias

Gabriel Petter
 
Qual é a semelhança entre Mário Cornejo, Raúl Peralta e René Saavedra? Em primeiro lugar, todos os três são personagens da trilogia que o diretor Pablo Larraín dedicou aos anos da ditadura militar no Chile. Apesar das diferenças mais evidentes - Mário é um homem que transita entre o altruísmo e a indiferença; Raúl é um psicopata cruel; René é um jovem inteligente, sofisticado, equilibrado financeira e emocionalmente -, substancialmente, esses três homens, cujos caminhos provavelmente nunca se cruzaram, padecem de profunda solidão. Mário, modesto assistente de um legista, tímido e solteiro, é quase um clichê do misantropo moderno. Raúl, inescrupuloso e com jeito para as mulheres (não obstante a impotência sexual) é um homem cuja solidão deriva da absoluta falta de empatia de si para com outrem, assim como da ausência de sentido que marca sua existência miserável. René é filho de exilados políticos de volta ao Chile após mais de quinze anos. Profissional brilhante, encontra-se naturalmente deslocado num país que está à toda contra o corroído regime instituído à força de baionetas pelo decadente Pinochet.

Pois foram tais homens que constituíram o reverso das forças de oposição à ditadura instaurada por um crápula de nome pomposo. Nada de "heróis" - Brecht, sabiamente, deplorava os povos que deles carecessem - empunhando bandeiras e armas nas ruas, mas pessoas comuns e perdidas em meio à batalha político-ideológica que se arrastava desde o governo socialista de Salvador Allende Grossens (1908-1973). É provável que Mário, ato contínuo ao crime horrendo que perpetrou, tenha sumido no mundo e não tenha sofrido qualquer perseguição, posto sua insignificância e o fato de ele ter eliminado inimigos da ditadura chilena; Raúl Peralta deve ter se desiludido com Tony Manero e procurado uma nova vítima para parasitar enquanto levava sua vida errante e despida de sentido; Quanto à René... bom, se ele vivesse no Brasil, provavelmente seria um consagrado publicitário prestando serviço à candidatos dos mais diversos matizes ideológicos. No Chile de final da década de 1980, está pasmo, meio atônito com o poder que seu talento e a propaganda tiveram para pôr fim a um longo e sofrido período histórico. Mas não necessariamente convencido de que as coisas melhorarão significativamente com Patricio Aylwyn, sucessor do pústula que ajudou a derrubar e que, na prática, não representa uma transição substancial, já que o presidente da nova "democracia" era ligado ao antigo ditador. 

No: Adeus, Senhor Pinochet (No: Adiós, Mr. Pinochet, EUA/CHI, 2012) tem o mesmo tom melancólico dos filmes anteriores de Larraín: Se há mais música e euforia, é por conta tanto do clima político chileno no final dos anos 1980 quanto pela natureza da campanha que René Saavedra elabora para derrotar o generalíssimo Augusto José Ramón Pinochet Ugarte, no último dos plebiscitos que o ditador convocava periodicamente para conferir algum estatuto de legitimidade ao seu regime de ferro e fogo. Entretanto, o clima de fim de Carnaval permeia todo o filme, mesmo em seu desfecho aparentemente catártico. René, exitante desde o início, parece não ter muito rumo após sua mais exitosa campanha. Procura simplesmente seguir uma vida normal, se isso é possível num país traumatizado pela violência das forças de repressão do governo ditatorial. E nisso, mais uma vez, Pablo Larraín esbanjou criatividade e talento, mesmo quando realizou um filme mais "quadrado"... pero no mucho. Para começar, fugindo um pouco da máxima "películas para público de oito à oitenta", o diretor chileno captou todo o longa com uma câmera U-Matic arrematada em famoso sítio de vendas. Nada de imagens entediantes de tão perfeitas, mas texturas típicas da tecnologia de vídeo dos anos 1980, belíssimas, porém desprezadas pelo fetiche da "alta definição." Isso confere ao longa um caráter documental que, ao contrário de outros grandes filmes, não se resume à inserção de imagens de época a uma produção cinematográfica com registro predominantemente "limpo", mas o torna num produto que não se distingue absolutamente nada das imagens de arquivo das campanhas envolvidas no plebiscito.

Por outro lado, se não temos o brilhantismo de Alfredo Castro como protagonista, imprimindo, com suas falas, as intenções mais recônditas das personagens de Pablo Larraín, podemos confirmar o talento de Gael García Bernal, escolha acertada de Larraín para o papel do jovem publicitário. Gael dá a sua personagem, amálgama dos geniais Eugenio García e José Manuel Salcedo - publicitários responsáveis pela campanha do "NO", e que inspiraram o protagonista da peça inédita El Plebiscito, de Antonio Skármeta, uma atuação na medida certa, não obstante não chegue a conferi-lhes o caráter quase transcendente que se pode perceber em Mário Cornejos e Raúl Peralta. E tal fato reforça a habilidade incomum de Pablo como diretor, posto que certos colegas de profissão, sem um ator, roteirista ou co-diretor para salvar seus filmes, simplesmente não saberiam dar um passo adiante - basta ver no que resultou certo road movie dirigido por aclamado diretor brasileiro e também protagonizado por Bernal. Pablo é quase um caso único de cineasta que consegue manter a própria liberdade autoral e ainda oferecer ao público obras que mantém o espectador com os olhos grudados no écran, ignorando a duração total das mesmas;

O filme que teremos a honra de exibir ao público na próxima sexta, dia 22 de novembro, não se reduz a um panfleto político-ideológico entranhado de raiva e ressentimento. No é, acima de tudo, uma crônica da solidão, em suas expressões extremas: a vitória e a derrota. É tal sentimento que parece se apossar das almas de Pinochet (se é que ele tinha alguma) e de Saavedra - sim, nem todo publicitário é Goebbels. O poder é solitário, mas este provavelmente era o único esteio que prendia o ex-ditador chileno ao mundo real. Tanto que, durante a redemocratização chilena, ele se atribuiu o infame cargo de Senador Vitalício. Morreu sozinho, execrado mundo afora, após sofrer a branda humilhação da prisão domiciliar em Londres. Do palácio La Moneda direto para a lixeira da história da humanidade. 



Comentários

  1. Caro Peter, muito bom o seu comentário...Lamentei não ter lido antes, pois que eu - ao contrário de muitos - gosto sempre de ler alguma coisa antes de assistir a determinado filme.
    Valeu...

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