Tony Manero: o estranho e encantador longa de Pablo Larraín
O filme que iniciou a bem-sucedida carreira de Pablo Larraín em festivais internacionais e a trilogia que o diretor chileno dedicou ao período ditatorial em seu país é uma obra que perturba o espectador, confrontado pela personalidade bizarra e carismática da personagem principal, encarnada antologicamente por Alfredo Castro. Tony Manero será exibido, excepcionalmente, na próxima quinta-feira, dentro da mostra retrospectiva dedicada ao diretor e produtor chileno Pablo Larraín
Cena de Os Embalos de Sábado à Noite (Saturday Night Fever, EUA, 1978):a personagem principal intitula o longa de Larraín e obseda seu protagonista
Gabriel Petter
Raúl Peralta não é um homem normal. Isso fica evidente logo nas primeiras sequências de Tony Manero (Idem, CHI/BRA, 2008), o segundo longa-metragem dirigido por Pablo Larraín e o primeiro da trilogia que o diretor dedicou ao período ditatorial no Chile - 1973/1990. Homem de meia-idade, sem ocupação definida, Raúl vive com a namorada numa pensão em ruínas que abriga também o boteco onde ele se apresenta caracterizado pela personagem vivida por John Travolta em Os Embalos de Sábado à Noite (Saturday Night Fever, EUA, 1977) Sucesso em todo o mundo, o musical norte-americano chegou aos cinemas chilenos no auge da repressão promovida e liderada por Augusto Pinochet (1915 - 2006). Raúl, não se sabe como nem porquê, torna-se obcecado pela personagem. Não há evidências concretas acerca de uma possível paixão platônica homossexual - não obstante certos trejeitos de Peralta, quando procura imitar Tony Manero, possam despertar tal suspeita. Aliás, não se sabe muita coisa a respeito dele. Estamos diante de um homem cujo mistério é um aspecto essencial da sua personalidade. Na verdade, Raúl nem parece existir. E isso parece não importar muito para ele. No fundo, o cinquentão santiaguino não só se projeta na imagem daquele belo e jovem americano do Brooklyn. Ele QUER SER aquele homem.
Para quem assistiu a Os Embalos de Sábado à Noite, a sequência final do filme exibido pelo Grupo 24 Quadros, excepcionalmente, na quinta-feira, dia 14 de novembro, traduz a personalidade bizarra de Peralta em relação à personagem que lhe obseda. Enquanto o Tony Manero nova-iorquino acha completamente injusta a vitória que ele e Stephanie, sua parceira, obtêm em disputado concurso de dança, para Raúl, sua derrota em concurso para a escolha do melhor sósia de Tony Manero, promovido por uma rede de televisão chilena, lhe parece indiferente. Mas só parece. Todas as expectativas de Raúl são colocadas na competição. A tal ponto que, no auge da loucura por se apropriar da personagem principal da película à qual assiste repetidas vezes no cinema, chega a matar e a roubar, sem se preocupar minimamente com as consequências dos seus atos. Em paralelo, ecos da ditadura violentamente instaurada há alguns anos em seu país surgem nas ruas e em sua casa, onde os jovens integram um grupo de resistência ao novo regime. A violência explode por todos os lados, de forma direta ou não, institucionalizada ou individualmente.
Como explicar tal loucura? Simplesmente, não há explicação. Seria óbvio arriscar uma associação entre a violência da ditadura e a psiquê frágil de Peralta, mas certamente incorreríamos num simplismo crasso. Ao que tudo indica, diferentemente do ambíguo Mário de Post-Mortem (Idem, CHI/ARG, 2010), Raúl é uma espécie de psicopata. Não alguém que se valha da frieza para se proteger das vicissitudes da vida (como o melancólico Mário), mas um homem cuja agressividade se mantém na superfície, latente, transbordando a qualquer momento: às vezes, como reação enfurecida e (relativamente) benigna contra algo que lhe perturbe; em outras, como ação efetiva e fatal. Para isso bastando apenas a contrariedade e a oportunidade. Raúl não se vale do seu parco talento como dançarino para sublimar tais sentimentos. A dança parece simplesmente aproximá-lo do seu herói. Outra explicação, essa também simplista, seria associar o comportamento de Raúl à tentativa de evasão em relação à realidade (cruel) vigente. Mas ele pouco está se lixando para isso. Ou você acha que alguém que mata uma pobre velhinha e lhe furta a televisão possui algum juízo moral?
Tony Manero é um filme cujas características são imediatamente reconhecíveis em filmes menos convencionais. Há muita câmera na mão e desfoques - aliás, a fotografia de Sergio Armstrong é um show à parte -, cortes secos e improvisação nas atuações. Mas tudo isso nem de longe o torna num produto chato e óbvio. Como bem expressou um crítico norte-americano, o longa de Larraín é estranhamente encantador. Tão estranho que muitos o classificam como uma "comédia", sendo que estamos diante, isso sim, de um drama dos mais pungentes. Esta é uma obra de entrelinhas, onde cada reticência do sisudo Raúl Peralta é significativa. Ponto para a atuação impressionante de Alfredo Castro, sem dúvida um dos maiores atores da sua geração e que consegue, muitas vezes com um simples olhar, expressar a complexidade da alma humana e das nossas relações com os símbolos que a indústria cultural procura nos vender. Sim, Raúl Peralta é um crápula, mas quem não se comove vendo-o solitariamente, expressão apática, dentro do ônibus que o leva para casa logo após sua derrota no concurso para o qual tanto se empenhara? Nessa cena, habilidosamente eliminada com um corte seco, o carismático psicopata parece carregar sob seu rosto vincado toda o vazio e solidão do mundo. Sim, ele também está perdido. Tanto como todos nós.
Tony Manero é um filme cujas características são imediatamente reconhecíveis em filmes menos convencionais. Há muita câmera na mão e desfoques - aliás, a fotografia de Sergio Armstrong é um show à parte -, cortes secos e improvisação nas atuações. Mas tudo isso nem de longe o torna num produto chato e óbvio. Como bem expressou um crítico norte-americano, o longa de Larraín é estranhamente encantador. Tão estranho que muitos o classificam como uma "comédia", sendo que estamos diante, isso sim, de um drama dos mais pungentes. Esta é uma obra de entrelinhas, onde cada reticência do sisudo Raúl Peralta é significativa. Ponto para a atuação impressionante de Alfredo Castro, sem dúvida um dos maiores atores da sua geração e que consegue, muitas vezes com um simples olhar, expressar a complexidade da alma humana e das nossas relações com os símbolos que a indústria cultural procura nos vender. Sim, Raúl Peralta é um crápula, mas quem não se comove vendo-o solitariamente, expressão apática, dentro do ônibus que o leva para casa logo após sua derrota no concurso para o qual tanto se empenhara? Nessa cena, habilidosamente eliminada com um corte seco, o carismático psicopata parece carregar sob seu rosto vincado toda o vazio e solidão do mundo. Sim, ele também está perdido. Tanto como todos nós.
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