TRAINSPOTTING – SEM LIMITES. A juventude que não aparece numa propaganda de refrigerantes.

Há quem deplore a década de 1980 como uma época perdida, mas o que viria depois não ofereceria maior alento além das fronteiras estadunidenses. A desesperança seria uma característica marcante dos anos 1990, que pode ser melhor conhecida através de expressões da cultura pop como o grunge e por películas que são uma verdadeira crônica desse tempo recente, como o filme Trainspotting, que exibiremos nessa sexta, dentro da programação de maio do cineclube 24 Quadros. No texto a seguir, Luca Salri explica a importância dessa película para uma geração premida pela falta de horizontes e a chegada do novo milênio

Bem, eu sou apenas um cara moderno
É claro, já ouvi isso antes
Bem, eu tenho um tesão pela vida
Porque eu tenho um tesão pela vida
♫”
(Iggy Pop)
  


 
Transpotting será exibido nessa sexta-feira, dia 23 de maio, na Vila das Artes

Por Luca Salri

Os anos 90, já sem a presença do Socialismo Real, são marcados pela intensificação do capitalismo globalizado – época das privatizações, do mercado internacionalizado e o Estado Mínimo (representado pela redução dos gastos públicos). São os “tempos prósperos”, pelo menos, para os otimistas das classes sociais mais abastadas.
Nesta década, a juventude se apresenta cada vez mais individualista, ávida pelo consumismo, cheia de desesperança e sonhos perdidos. Temas como drogas, sexo, violência e desemprego se misturavam no cotidiano do jovem como se fossem novas bandas de rock e peças de propagandas publicitárias.  Mais do que nunca a cultura pop lucra com o aumento do consumo individual dessa juventude. Consumir é preciso, viver não é preciso (?). No comercial dos cigarros Free, dizia-se “cada um na sua, mas com alguma coisa em comum”. Se havia algo em comum entre os jovens dessa época era justamente ser diferente dos outros. “Ser diferente é ser normal” – expressão personificada pelo maior ícone dos jovens daquela época, Kurt Cobain - o atormentado jovem líder da banda de rock Nirvana, que cometeu suicídio em 1994. E muitos jovens seguiram esta máxima; através das roupas, expressões e atitudes. Vários diretores de cinema estrearam nesta época e souberam representar o universo jovem dos anos 90 em produções cinematográficas. É o caso do diretor britânico Danny Boyle, que ao longo de sua carreira mostrou mais versatilidade do que autoria.
Em seus primeiros filmes, Boyle - que gosta de trabalhar com os mesmos atores e equipe técnica - apresentou uma câmera nervosa, violência explícita, tensão constante e personagens com ímpetos autodestrutivos. Ingredientes bem marcantes no seu segundo longa, Trainspotting – sem limites (1996). Produção britânica que mistura comédia (melhor seria dizer, uma comédia britânica bem ácida) com toques de drama num roteiro baseado no livro homônimo do escritor Irvine Welsh sobre quatro jovens escoceses da classe baixa de Edimburgo. Viciados em heroína e sem muitas expectativas em relação à vida, a não ser, quando terão a próxima picada.
A obra não deixa de ser um retrato da subcultura jovem britânica, que sofria, há tempos, com o desmantelamento do bem-estar social realizado pela primeira-ministra Margaret Thatcher. Jovens sem um sentido na vida e falta do que fazer diante de mundo com portas fechadas. É sobre isto que o título do filme se refere. Trainspotting pode ser traduzido de duas formas. Literalmente, “conferindo os trens” referindo-se a um passatempo dos jovens britânicos de conferir os horários que os trens passam e a outra forma refere-se a uma gíria escocesa que remete a fazer uma atividade sem sentido que implica numa total perda de tempo. E tudo que os personagens do filme tem é tempo para desperdiçar.
Mark Renton é, ao mesmo tempo, o personagem principal e narrador onisciente da história (no livro, a narrativa se desenvolve através de vários pontos de vista). Ele é apresentado na sequencia de abertura do filme (muito próxima de um videoclipe para a música “Lust of Life” (tesão pela vida) de Iggy Pop): correndo pelas ruas de Edimburgo após cometer um delito e em off, seu discurso “Choose Life” ("escolha viver. Escolha um emprego. Escolha uma carreira, uma família. Escolha uma televisão enorme. Escolha lavadora, carro, CD Player e abridor de latas elétrico. Escolha saúde, colesterol baixo e plano dentário. Escolha viver. Mas por que eu iria querer isso? Escolhi não viver. Escolhi outra coisa. Os motivos? Não há motivos. Quem precisa de motivos quando tem heroína?). Com esse discurso nada convencional, o protagonista nega uma vida segura, estabilizada e previsível.
Ao longo do filme, Renton e seus amigos (personagens distantes que os espectadores terão dificuldade de criar empatia por eles) são conduzidos a limites extremos, que mostram o quanto eles conseguem tolerar psicologicamente e o que acontece quando eles enfim alcançam este limite. Mas será que há limites para eles? O subtítulo em português indica que não.
Trainspotting tornou-se um filme cult dos anos 90 e da cinematografia britânica mesmo com um grande sucesso de bilheteria e reconhecimento da crítica na época de seu lançamento. Contribuíram para isso, a trilha sonora (que vai de clássicos do rock dos anos 70 ao Britpop e música eletrônica dos anos 90), as interpretações do elenco principal, forte linguagem visual, uma montagem enxuta e as várias referências da cultura pop. Além da dosagem exata de ironia, sexo, drogas, crime, violência, DST e crítica social.
A produção não foi a única da década a abordar o tema “drogas” (tivemos no mesmo período: Diário de um adolescente (1995) e Réquiem para um sonho, de 2000), mas acabou sendo um dos mais controversos filmes sobre o tema. Na época de seu lançamento, Trainspotting foi acusado de fazer apologia às drogas (principalmente à heroína). A obra teve coragem de dizer que é prazeroso se drogar e que é difícil larga-las (pelo menos, os personagens acreditam neste dilema). A maneira que o tema foi tratado no filme não afastou o público, não glamourizou o mundo das drogas e muito menos, fez um julgamento moral sobre os viciados. Ao invés do rótulo “filme sobre drogas”, temos uma obra sobre comportamento e sobre a falência do estilo de vida consumista, bastante forte nos anos 90.

A sequencia final do filme é muito parecida com a primeira: Mais uma vez, temos Renton fugindo. Fugir (ou tentativas de fuga) é o que mais ocorre com o protagonista e seus amigos ao longo do filme: fuga do cotidiano, da miséria, da polícia, de Edimburgo, da Escócia, da repetição dos dias em vidas vazias e da própria heroína (que não deixa de ser um veículo de fuga de suas vidas).
Renton foge e sorri, como alguém que tem a certeza de que chegou ao fundo do poço, e tudo que ele mais quer é voltar a ser uma pessoa normal (“Eu vou mudar. É a última vez que faço isso. Vou limpar e seguir em frente, virar careta. Escolhi viver. Já estou ansioso por isto. Vou ser exatamente como você: emprego, família, ...”). Afinal, ser normal pode ser diferente.


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