Conta Comigo: um filme com mais de nostalgia e menos de anos 80
Um filme à parte no contexto do Blockbuster Fever da década de 1980, Conta Comigo será orgulhosamente exibido nessa sexta-feira, dia 16 de outubro, dentro da nossa mostra dedicada aos clássicos de um dos melhores períodos para o cinema comercial de todos os tempos. Em texto assinado por Luca Salri, o leitor pode compartilhar um pouco da fascinação que tornou este filme, para quem o assistiu, numa das raras experiências que só a sétima arte pode oferecer
“♪
E se a gente se falar/contar as coisas que viveu/ O que esperamos do
amanhã/será que pode acontecer?♫” (“River Phoenix –canção para um jovem ator”
Milton Nascimento)
Por Luca Salri
Nos anos 80, o cinema
de Hollywood consolidava os chamados blockbusters
- fenômeno iniciado na década anterior por Steven Spielberg e George Lucas.
Os filmes “arrasa-quarteirão” eram lançados no verão americano e tinham
forte marketing para atrair público, em especial, o jovem, para o qual se criou o filão do Cinema Teen (ou Filmes Teen). São dessa época produções
com o selo “Steven Spielberg apresenta”, que faziam enorme sucesso, como Gremilins (Idem, EUA, 1984), De volta para o Futuro (Back to the
Future, EUA, 1985) e Os Goonies (The
Goonies, EUA, 1986); além das produções assinadas por John
Hughes, o “Spielberg dos adolescentes”(!) como os clássicos O Clube do Cinco (The Breakfast Club, EUA, 1985)
e Curtindo a Vida Adoidado (Ferrys Buller’s Day Off, EUA, 1986).
O
que há de comum nessas películas é a presença de personagens jovens, em
sintonia com as novidades tecnológicas e musicais da época, assim como com o consumismo desenfreado. Eram tempos de novos valores e, com eles, uma juventude mais
pragmática, menos ideológica. Nas produções cinematográficas, as crianças
viviam num mundo de fantasia (“ET” e “Viagem ao mundo dos sonhos”, como
exemplos) e os jovens viviam seus dilemas num microcosmo chamado High School (o Ensino Médio para os norte-americanos) e, junto com esses dilemas,
vinham os estereótipos: o nerd que se
apaixona pela líder de torcida, o professor neurótico, o amigo rejeitado, o cara mais cool - normalmente o vilão da história -, e por aí vai.
Destoando de todo este universo criado
pelo Cinema Teen, há uma produção estadunidense
lançada no mesmo ano das aventuras de um certo Ferrys Bueller e Top Gun (Top Gun: Ases Indomáveis, EUA, 1986), que não tinha "cara" de anos 80. Estamos falando de Conta Comigo (Stand by me, EUA, 1986). Mas afinal, depois do estrondoso sucesso
de Os Goonies, quem se interessaria
em assistir a um filme, misto de drama com road
movie (sem estrada!), protagonizado por quatro garotos a procura de um cadáver,
baseado num conto de um consagrado escritor de terror e sem a participação de
Spielberg ou John Hughes? Conta Comigo
conseguiu este feito. A obra foi lançada em agosto de 1986, ao custo de U$$ 8
milhões, e rendeu U$$ 52 milhões, ficando em 2º lugar na arrecadação de
bilheteria durante um bom tempo.
Um
dos méritos para o sucesso do filme está no texto de Raynold Gideon
e Bruce Evans, roteiristas de Starman – o
homem das estrelas (Starman, John Carpenter, 1982). Conta comigo é baseado no conto "Outono da Inocência: O Corpo" (The Body), de Stephen King, e originalmente lançando no livro As
Quatro Estações. Este é considerado o conto mais pessoal da carreira de King, já que a estória remete à infância do escritor, à primeira vez que King viu um
cadáver. A trama gira em torno de quatro amigos que passam a infância na pequena
cidade de Castle Rock no Estado de Oregon (no
conto, a história se passa no Maine, Estado-natal de King), no final do verão de 1959, e que, ao tomar conhecimento do
desaparecimento/ morte de um adolescente, decidem ir à procura do corpo
da vítima.
Este é um drama protagonizado por adolescentes, o qual apresenta questões sobre amizade, crescimento pessoal, ritos de passagem e sentimentos de perda e que surpreendeu o público da época por ser baseado numa obra incomum de King (à época, bastante consagrado por seu estilo ligado ao suspense e ao sobrenatural). Contudo, se analisarmos o filme com mais atenção, encontraremos um elemento muito comum nas obras do escritor: o medo. Em Conta Comigo, o medo não precisa de algo sobrenatural para existir; basta apenas que ele se aproxime do cotidiano dos quatro garotos que estão saindo da infância e chegando à adolescência. Daí temos: o medo de se deparar com um cadáver, de ser atropelado por um trem, fugir de um cão feroz para não ser atacado por ele, o medo de um bicho ficar preso em nossas calças e principalmente, o medo do fim da infância.
A obra utiliza bem a cartilha da estética clássica do
cinema. Um roteiro aparentemente simples e desenvolvido numa narrativa direta
com os três atos (apresentação, conflito e desfecho), um narrador, com drama e
humor na medida certa e a presença de antagonistas (a gangue de Ace). A morte é o elemento que dá início e o fim da
jornada (a notícia da morte do amigo e o encontro com a morte através do
cadáver, respectivamente). Ao longo da jornada (cheia de percalços) de nossos
heróis, os segredos revelados e flashbacks
levam o espectador a conhecer a complexidade dos personagens: o rebelde Chris
(River Phoenix), o introspectivo Gordie (Wil Wheaton), o explosivo Teddy (Corey
Feldman) e o bobão Vern (Jerry O'Connell). Vale ressaltar a boa sintonia entre
os quatro garotos que encarnam o espírito do que é ter amigos na infância. Na
época, Corey Feldman era o mais famoso do grupo, já havia participado de outras
grandes produções (Os Goonies !), mas
foi o dono do personagem que era o líder do grupo que obteve grande sucesso nos
anos seguintes. River Phoenix tornou uma grande promessa de Hollywood,
que não se concretizou devido a sua morte prematura e trágica. Tão trágica
quanto a de seu personagem Chris.
Não são apenas a amizade e a oportunidade de serem famosos ao achar o cadáver que os unem. Entre eles, há o sentimento de perda (seja de um ente, do respeito, da sanidade ou de uma pequena fortuna) e o inevitável destino de crescer e aceitar a vida como ela é ou como ela se apresenta diante deles. Temas bastante presentes no cinema clássico norte-americano estão lá: amizade, lealdade e crescimento. Por se tratar também de um road movie, há uma viagem única que vai mudar a vida dos personagens para sempre; há surpresas no meio do caminho; o trajeto em si mais importante do que o destino final e a presença de planos abertos com personagens perdidos na imensidão da paisagem. Já os planos médios (enquadrando os quatro amigos) e primeiros planos (com o uso do plano e contra-plano) são utilizados para mostrar os personagens e criar uma proximidade com o espectador, como se ele fosse quase um quinto integrante do grupo. A belíssima fotografia de Thomas Del Ruth (com uma luz em tons amarelos durante a jornada, no desfecho, a luz utilizada parece anunciar o fim do verão e o início do outono). Aliada a fotografia, estão o figurino e a trilha sonora para transmitir ao espectador uma intimidade com o ambiente em que os garotos transitam. Capitaneada pela canção que dá título ao filme de “Stand by me” na voz de Ben E. King, a trilha foi mais além do que várias trilhas sonoras da década, ricas em sintetizadores.
Todos esses fatores levam Conta Comigo a ser um filme que foi realizado dos anos 80, mas que não reside apenas nessa época. É uma obra atemporal e sua intenção continuará intacta: levar o espectador de volta a sua infância, no mais puro sentimento de nostalgia. É um retrato nostálgico da infância, e, (porque não dizer?) do próprio Stephen King. É essa saudade idealizada tão presente nos saudosistas dos anos 80 e muito forte em Conta Comigo que o aproxima dos filmes dos anos 80 ou de quem viveu nela. Não que a maioria dos filmes tratasse desse tema, mas a nostalgia reside no adulto de hoje que foi criança na “década perdida”, que supervalorizou obras que hoje não tem o mesmo impacto da época e que envelheceram mais do que ele. Mesmo sendo nostálgica, a obra de Rob Reiner não busca a consagração da infância, apenas humaniza seus personagens e o que acontece é que o espectador nostálgico encarna o espírito de Gordy, o personagem/ narrador que prefere idealizar sua infância, mesmo perdendo os amigos pelo caminho da vida. No final, ele escreve: “Nunca tive nenhum amigo depois, como quando tivera quando tinha 12 anos. Jesus, alguém teve?”. E eu pergunto: Mas quem realmente se esforçou pra continuar mantendo, Gordy?
O filme Conta Comigo será exibido nessa sexta-feira na Vila das Artes a partir das 18h30min. A Mostra continua até o final do mês de outubro.
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