Robocop: quando o presente ainda não era distópico

 Assistir a Robocop é sempre uma experiência excitante. Nessa sexta teremos o prazer de apresentar ao público essa obra-prima do sci-fi moderno, atualíssima nestes tempos de Brasil com várias cidades entre as mais violentas do mundo. Duvida?Então leia o texto a seguir, compartilhe-o e assista ao filme no conforto de um auditório e em tela grande, na Vila das Artes

Robocop (1987): obra-prima do sci-fi moderno, será exibido nessa sexta, no cineclube do Grupo 24 Quadros

"You have the right to remain silent. Anything you say can be used against you".

Por Gabriel Petter 

Robocop (EUA, 1987) foi um dos filmes da minha vida. Não tive o prazer de assisti-lo no cinema, mas numa modesta cópia em fita VHS, no videocassete de uma tia materna, em cuja casa às vezes eu passava finais de semana ou parte dos recessos escolares. Naquela época (primeira metade dos anos 1990), Fortaleza ainda era uma cidade onde o imaginário da violência armada se restringia a alguns bairros mais pobres ou à televisão, principalmente nos noticiários que repercutiam os conflitos entre a polícia militar e traficantes nos morros cariocas. O futuro era distante (e não distópico), tal como a noção de tempo e espaço pré-internet numa pequena grande cidade. 

Nesse contexto, era possível se sentir confortável em relação a um amanhã que parecia ficção cinematográfica. Mas Paul Verhoeven pode ser tudo, menos partidário da mistificação. Seus filmes nunca foram simples entretenimento. Robocop é o retrato (exagerado, mas nem tanto), das consequências últimas do neoliberalismo que reduziu antigas cidades industriais como Detroit e outros bastiões do manufacturing belt estadunidense a um amontoado de escombros onde a miséria e o sentimento de vazio fermentaram o ódio, a revolta e o desespero, o que resultou numa escalada da violência sem precedentes. 

É impossível dissociar a película de Verhoeven do seu contexto histórico. São abundantes as citações - e provocações - da (e à) Era Reagan (1980-1989), como na sequência em que um tragicômico telejornal sensacionalista noticia a morte "acidental" de dezenas de pessoas por conta de um disparo errôneo da plataforma de defesa espacial denominada Guerra nas Estrelas, o mesmo nome com o qual Reagan batizara um megalomaníaco e fracassado projeto militar norte-americano que reacendeu as hostilidades entre os EUA e a ex-URSS, na fase final da Guerra Fria.

Em meio a uma Detroit dominada pela associação temerária entre o Estado, as megacorporações - representadas no filme pela Omni Consumer Products (OCP), empresa que passa a ter o controle da segurança pública - e traficantes de drogas e armas, e sob constante ameaça de greve policial, a violência grassa como o sintoma evidente de uma sociedade em ruínas. Como sói  ocorrer nesses contextos desastrosos, não se procura combater as causas da violência em sua essência, mas apenas no que pode ser feito imediatamente - amiúde com resultados pífios. As soluções apresentadas pela OCP para administrar o caos são a construção de um mega-condomínio fechado (para o conforto de quem pode pagar), chamado Delta City e de robôs programados para obedecer cegamente à lei.

Leis são legais (e me desculpem a redundância), mas nem sempre são justas, como lembra a máxima latina summus jus suma injuria ("A justiça máxima pode levar à máxima injustiça"). Após um erro fatal na programação de um dos robôs que deveria garantir a segurança coletiva - e que resulta na morte brutal de um executivo da OCP -, a opção por um ciborgue - simbiose entre ser humano e máquina - ganha força, numa espécie de golpe arrivista que oporá Dick Jones (Ronnie Cox, brilhante!), o número dois da OCP  a Bob Morton (Miguel Ferrer, em excelente performance), executivo mais jovem e ambicioso, arquétipo do yuppie oitentista. Sobretudo quando o ser humano cujo corpo será invadido por componentes eletrônicos e programas de computador será um policial recém-falecido - teoricamente, uma pessoa a serviço da lei.

Eis o erro da OCP e a força de Robocop enquanto obra dramática. O "tira" escolhido para encarnar (encarnar seria o termo exato?) esse agente de segurança ideal é Alex Murphy (Peter Weller), um homem que tem a vida detonada após ser executado pela principal organização criminosa de Detroit, a qual mantém laços fraternos com Dick Jones. Não obstante as transformações impostas ao corpo e ao cérebro de Murphy, ocorre uma espécie de "erro operacional" que preserva vestígios da sua humanidade, o que se expressará no sentimento de vingança (e não justiça) do ciborgue em relação aos seus assassinos e àqueles que lhe usaram para atender seus próprios interesses.

A luta entre a emoção do homem por trás da razão da máquina é o elemento dramático principal de um filme permeado por paixões e conflitos individualistas, que nada mais são que a crônica de um tempo - não superado - onde o sucesso individual é a primazia e a razão de ser no mundo do capitalismo financeiro. Alex luta desesperadamente pelo seu direito à memória, àquilo que lhe faz humano, mas, no fundo, sabe que não tem condições de voltar atrás. Só lhe resta fazer justiça - com as próprias mãos. Quem não se identifica com isso no Brasil da impunidade?

Robocop foi o tipo de filme que saiu melhor que a encomenda. Desacreditado - foi considerado como artigo B pelos produtores estadunidenses - e com orçamento pequeno para um filme de ficção científica (apenas U$$ 13 milhões), gerou o triplo em bilheteria, estimulando a Orion Pictures a produzir outras fraquíssimas sequências, sendo a terceira o golpe financeiro de misericórdia no estúdio, uma vez que custou cerca de U$$ 20 milhões e não gerou um centavo de lucro. Embora seu enredo não seja exatamente original - o tema do ciborgue a serviço da lei já fora explorado no mangá O Oitavo Homem, publicado em 1963, no Japão - e sua equipe não seja estrelar - algo típico de filmes "categoria 2" -, o longa teve a sorte de contar com o mestre neerlandês Paul Verhoeven na direção.  

Criador e criatura: o diretor Paul Verhoeven e Peter Weller, caracterizado como Robocop, preparando-se para outra dura sequência de filmagem

Artista com grande prestígio na Europa, Verhoeven é um diretor de extremos, um esteta do lado escroto da vida. Ainda em sua fase holandesa, abordou estórias e personagens que povoam os pesadelos de qualquer mãe de família. Em terras americanas, receberia como desafio fazer um filme de pequeno interesse um grande sucesso. É nessas horas que os milagres do talento se manifestam. Verhoeven não só conseguiu encher os bolsos dos produtores yankees de dólares como ainda transformou um produto de entretenimento numa obra artística que não deixa nada a dever aos melhores filmes de ficção (e não apenas científica) de todos os tempos.

Como? Primeiro, na habilidade em trabalhar a corporalidade dos personagens. Se ele conseguiu fazer Arnold Schwarzenegger parecer convincente em O Exterminador do Futuro (The Terminator, EUA, 1987) com Peter Weller não seria tão difícil. O ator passou nada mais do que sete meses trabalhando com um coreógrafo a fim de desenvolver o que seriam os movimentos de um ciborgue. O resultado não é caricato ou puramente representativo, mas a incorporação das próprias dificuldades que Weller sentia ao usar a pesada armadura, aliás, o item mais caro da produção. Verhoeven é um partidário da atuação e não da imitação. Não à toa trabalhou com atores corporais como seu conterrâneo Hutger Hauer. Em filmes de ação, onde tudo parece pender à simplificação estilística, isso é um prato cheio. 

Por outro lado, a maneira como o diretor rodou as principais sequências de ação, com abundância de planos (vertiginosas sucessões espaço-temporais), ótimas coreografias e abusando de tudo o que a direção de arte e fotografia podiam oferecer, dotou o longa de uma força imagética indelével. Particularmente, as sequências em que há intensa troca de tiros não dão espaço para o espectador pensar. São sequências de adrenalina pura, do tipo que só oferecem uma alternativa ao espectador: esperar que a poeira baixe para que ele possa pensar. Isso não quer dizer que Robocop seja um filme estupidificante. Seu roteiro é uma obra à parte: mordaz, de uma ironia fina, profético e encerrando uma filosofia profunda.

Robocop foi o tipo de obra que se beneficiou de uma conjunção feliz de fatores e elementos profissionais, não obstante a escassez de recursos. Algo raríssimo na maioria dos filmes e que só pode acontecer quando o talento se sobrepõe às contingências. Em robocop, temos um típico filme de diretor, que não só sabe dar forma às ideias que lhe são lançadas como ainda consegue imprimir sua marca pessoal sobre o imaginário coletivo. Mesmo após quase trinta anos, um filme como Robocop ainda é muito atual e faz parte da representação de futuro de boa parte das pessoas. Que dirá quem o viu numa ainda pacata capital que parecia estar docemente apegada ao passado? Naquela época, saudosa, sem dúvida, o futuro é que era distópico e não o presente.

Confira o trailer:

https://www.youtube.com/watch?v=hm-18Hm9jnY

Robocop: o policial do futuro será exibido nessa sexta, dia 24 de outubro, no auditório da Vila das Artes, a partir das 18h30min. A mostra dedicada aos clássicos dos anos 1980 continua durante todo o mês de outubro.

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