A BELA DA TARDE: Os Sonhos Eróticos de Buñuel
Em tempos de Marco Feliciano e neo-carolismos de tudo que é quilate, nada melhor que voltar às fontes originais das discussões estúpidas e hipócritas que até os dias de hoje perpassam nossa vida social. Sexualidade com fantasia e sem culpa, assunção do desejo e, acima de tudo, um grande produto artístico-cultural é o que podemos encontrar em A Bela da Tarde, que será exibido hoje, dentro da programação de fevereiro do cineclube 24 Quadros, dedicada ao cinema de cunho erótico. Em texto assinado por Pierre Grangeiro, um pouco de outra das obras-primas do cineasta espanhol Luís Buñuel - 1900-1983
Criador e criatura: Luis Buñuel dirigindo uma das sequências de A Bela da Tarde (1967), exibida nessa sexta, na Vila das Artes
Por Pierre Grangeiro
Depois de ter causado sensação no mundo inteiro com seus
polêmicos curtas-metragens e de ter passado por uma ótima
fase mexicana, Luís Buñuel voltou à França, onde se consagrou definitivamente como um dos maiores e mais instigantes cineastas da história. Essa fase de
obras mais maduras tem como destaque filmes como O Discreto Charme da
Burguesia (Le Charm Discret de la Borgeoisie, FRA/ITA/ESP, 1972) e O Fantasma da Liberdade, (Le Fantôme de la Liberté, FRA/ITA, 1974). Entretanto, o
filme que o tornou popular no mundo inteiro foi feito um pouco antes. Estamos falando, é claro, de A Bela da Tarde (Belle de Jour, FRA, 1967), um dos maiores clássicos da história do
cinema. E boas razões não faltam para esse título.
Em primeiro lugar, esse foi o filme que tornou Catherine Deneuve num dos maiores símbolos sexuais do século XX. Seu desempenho como a bela e misteriosa Séverine é simplesmente antológico. Sem dúvida ela será sempre lembrada como a socialite frígida que começa a se prostituir para satisfazer suas fantasias sexuais. Cada gesto seu no filme é incrivelmente marcante, desde a sequência inicial, na qual notamos seu êxtase ao fantasiar que está sendo abusada pelo próprio marido e por seus empregados. Alias, essa película tem todas as prerrogativas necessárias para nos levar à compreensão da razão de Buñuel ter sido o artista que levou o Surrealismo ao seu limite. Há várias cenas no filme onde fica difícil distinguir entre o sonho e a realidade. As fantasias eróticas da protagonista fazem com que o espectador entenda as suas ações, com insuspeitada dose de piedade pela personagem. Torcemos por suas transgressões, e seus momentos nas "casas clandestinas" são os melhores da película. Esse destemido ataque frontal à moral burguesa e as suas instituições caracteriza o conjunto da obra do realizador.
Uma outra razão para o verdadeiro culto em torno desse monumento cinematográfico diz respeito ao seu papel histórico. Realizado durante a segunda metade dos anos 1960, ele coincidiu com as diversas mudanças de cunho radical do período, inclusive a chamada Revolução Sexual. Nesse sentido, ela é uma espécie de símbolo histórico da contracultura.
À parte o culto e a razão...
Algumas sequências do filme são absolutamente inesquecíveis, como aquela que mostra o cliente com uma caixinha misteriosa, cujo conteúdo só nos é revelado na imaginação. Outro grande momento do longa é a sequência que mostra um ginecologista cujo fetiche é ser humilhado por uma fantasiada patroa prostituta. Embora seja considerado um drama erótico/psicológico, Luís Buñuel não abre mão do seu humor sutil e sarcástico. Nesse sentido, um personagem bastante interessante é o conquistador Husson (Michel Picolli), que tenta seduzir Séverine de todas as formas, mas perde o tesão ao descobrir que ela tinha aderido à mais antiga das profissões. A chegada de um bandido violento, vivido pelo saudoso Pierre Clémenti, e que se apaixona pela personagem principal, é outro grande achado do roteirirsta Jean-Claude Carriére, um dos mais constantes colaboradores do cineasta espanhol.
A bela fotografia, assinada porSacha Vierny, juntamente com o figurino, assinado pelo grande Yves Saint-Laurent, referência de moda nos anos 1970, também são dignos de nota. Ganhador do Festival de Veneza e absurdamente taxado de pornô à época do seu lançamento, a mitologia em torno dessa obra cult não pára de crescer. No Brasil, inspirou até canção homônima, assinada por Alceu Valença. Com tantas qualidades em vista, tudo o que precisamos fazer é apagar as luzes e nos deliciarmos com as loucas escapadas da infeliz Séverine.
A Bela da Tarde será exibido hoje, a partir das 18h30min, na Vila das Artes.
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