Um Sonho de Liberdade: Quando a Adaptação Torna-se Maior que o Original

Dando sequência à mostra dedicada às adaptações da obra de Stephen King para o cinema, exibiremos, nessa sexta-feira, dia 22 de agosto, o extraordinário Um Sonho de Liberdade, excelente adaptação de um conto do nosso conhecido mestre do horror literário. Em texto assinado por Luca Salri, uma análise profunda, apaixonada e lúcida ao mesmo tempo (por paradoxal que isso possa parecer), que esmiúça um dos filmes mais belos que a cinematografia estadunidense dos anos 1990 legou aos amantes da sétima arte

 Tim Robbins em sequência de Um sonho de Liberdade, filme que exibiremos nessa sexta-feira, dentro da mostra Stephen King no Cinema

Por Luca Salri

Sempre que se faz uma adaptação de uma linguagem artística para outra, é muito natural que ocorram mudanças. E estas podem tanto melhorar como prejudicar o original. O cinema, ao longo de sua história, explorou recursos da literatura para se desenvolver enquanto linguagem. Na maioria das vezes, a adaptação cinematográfica de uma obra literária tornou-se um grande fracasso, por deixar de fora elementos que constroem a essência do livro. “Não julgue um livro pelo seu filme”, alertam os defensores ferrenhos da literatura. Mas não é uma tarefa fácil adaptar um livro para a grande tela. Muitos fracassam nesta missão por tentar recriar no ecrán o livro de maneira idêntica e esquecem que a qualidade de uma adaptação reside em manter as qualidades da obra literária para construir obra equivalente ao original. Não deixa de ser uma tradução para a tela.

A produção norte-americana Um Sonho de Liberdade (Shawshank Redemption, EUA, 1994), do diretor Frank Darabont, é um caso de  adaptação cinematográfica muito bem realizada. O filme é baseado em um conto de Stephen King intitulado "Rita Hayworth e a Redenção em Shawshank" (A Eterna Primavera), que faz parte do livro Quatro Estações (Different Seasons, 1982). Ao invés do universo do terror - muito característico nas obras de King – amizade e redenção aparecem como temas na obra. Os filmes Conta Comigo (Stand By Me, EUA, 1986) (outra ótima adaptação), de Rob Reiner, e O Aprendiz (Art Pupil, 1998), de Bryan Singer, são adaptações de outros contos desse mesmo livro. De um conto com 42 duas páginas surgiu um filme com mais de duas horas de duração. Os fatores que contribuíram para a bem sucedida adaptação foram vários.

A começar pelo diretor, que também foi responsável pelo roteiro. Antes de se tornar diretor, Darabont havia construído uma carreira como roteirista. Nos anos 80, assinou vários roteiros ligados ao terror (A hora do pesadelo III, A Bolha Assassina e A Mosca II e episódios da série Contos da Cripta). Seu primeiro filme como diretor foi Enterrado Vivo (Buried Alive,1990) – uma pérola televisiva que foi exaustivamente reprisada no SBT. Ao contrário do que se pensa, Um Sonho de Liberdade não foi o primeiro filme do diretor baseado em uma obra de King. Em 1983, ele liberou suas obras (ao custo de um dólar!) para que estudantes de cinema as filmassem, desde que não fossem exibidas comercialmente. Darabont adaptou A Mulher do Quarto (Woman in the room) para um curta-metragem. King gostou do resultado final e liberou o curta para a TV. A familiaridade com o universo criado por King contribuiu para que o diretor assinasse um roteiro que fosse melhor do que original.

As alterações feitas do livro para Um Sonho de Liberdade foram feitas respeitando a essência da obra. Entre elas, podemos citar: O personagem de Brooks que aparece em apenas um parágrafo no livro, ganha destaque maior no filme, tornando-se um “espelho” para os outros presos; o diretor Norton aglutina as características de três diretores que passaram pelo presídio durante a prisão de Andy e, ao final do filme, é acrescentado algo que fica apenas subtendido no livro; o plano de fuga de Andy é revelado ao leitor aos poucos e não há indícios de que a personagem principal possa cometer suicídio; o desfecho de vários personagens é alterado. Tudo é válido para que se aumente a dramaticidade do enredo, cheio de segredos que prendem a atenção do espectador.

O elenco é outro fator positivo. Nos dez minutos iniciais do filme, são apresentados os três personagens principais da história: Andy Dufresne, Boyd “Red” Redding e o próprio presídio de Shawshank.  A dupla de protagonistas descritos no livro como um homem baixo e um irlandês ruivo (Andy e Red, respectivamente) dão lugar a um homem (muito) alto (Tim Robbins) e um negro (Morgan Freeman). A sintonia criada entre os atores - a partir de atuações simples e tocantes - foi fundamental para que se desenvolvesse entre seus personagens os dois temas mais importantes do filme: amizade e esperança. O Andy de Robbins é misterioso: nunca sabemos o que ele esta pensando. De uma cena à outra, seu semblante muda. Na cena inicial, ele demostra ser um homem frio e calculista; entretanto ao chegar a Shawshank, o vemos como um homem cheio de medo e esperança. Ao contrário do que se supõe, Andy não é o personagem principal do filme, nem no livro esse protagonismo é claro. A ação nunca é apresentada pelo ponto de vista de Andy. O vemos e o conhecemos como os outros personagens o veem, principalmente Red. Este sim, se torna o personagem principal do filme (não foi à toa que Freeman recebeu uma indicação para melhor ator), ele é a linha condutora da trama. A identificação que o espectador vai encontrar no filme é com Red. Um dos pontos altos da história é a narração em off feita com maestria por Freeman. É esta voz mansa que realça o ritmo do filme, que conduz o espectador a participar da história. Vale destacar também, o bom trabalho do elenco de apoio. Formado por atores pouco conhecidos do grande público, eles dão conta do recado e como diria Red, formam uma “família” na história.

Não podemos esquecer que Um Sonho de Liberdade é um “filme de prisão” – um subgênero que percorre a história do cinema. E como todo filme de prisão, os clichês sempre aparecem, repetindo-se na obra de Darabont: o diretor corrupto, guardas violentos, violência sexual, mortes, erros judiciais, plano de fuga, rotina e, como o próprio título original acusa, redenção. E como em todo filme desse filão, o presídio assume um papel importante na história, é praticamente um personagem coadjuvante. Shawshank aparece na película como um lugar antigo, imponente, sombrio que pode amedrontar até mesmo num dia de sol claro.

Um Sonho de Liberdade bebe muito da fonte da estética do cinema clássico. Mesmo sendo lançado no final do século XX, o filme é um representante do modo de fazer cinema clássico norte-americano. É uma obra cheia de mensagens de esperança e altruísmo onde o mal inevitavelmente será derrotado. Na história, temos a saga do herói (neste caso, do “homem comum”) pautada por uma narração, desenvolvida entre os atos e repleto de plot points (ou “pontos de virada”: incidentes que mudam o curso da ação dramática). Temos a presença de cenas marcantes que tocam o espectador (só para citar: a despedida de Brooks e a conversa entre os protagonistas na muralha, próximo ao clímax do filme). Vale destacar a fotografia em tons dourados e cinzas e trilha musical que não antecipa o que vai acontecer na cena, mas a realça. Todos estes fatores davam a garantia aos envolvidos de que a obra seria um grande sucesso de público, crítica e premiações na noite do Oscar 95. Porém, nada disso ocorreu.

O filme custou U$$ 25 milhões e foi lançado em 23 de setembro de 1994. Com fraca receptividade de crítica e público, a obra só rendeu U$$ 18 milhões. Entre os motivos para o fracasso retumbante está o desinteresse do público de ver um “drama na prisão” sem ação ou personagens femininos. Já a crítica detonou o título original do filme e considerou a obra como algo ultrapassado. Com a chegada do Oscar, o filme ganhou sobrevida nos cinemas, arrecadando mais U$$ dez milhões em bilheterias, após as sete (merecidas) indicações. Corria por fora na disputa que ainda tinha Forrest Gump (outro exemplar da estética clássica do cinema norte-americano) e Pulp Fiction (representante de um cinema independente que despontava com muita força nos anos 90). Um Sonho de Liberdade correu tanto por fora que não recebeu prêmio algum. O filme só foi descoberto com sua chegada às locadoras. Com o famoso “boca-a-boca”, foi o vídeo mais alugado em 1995(!). E o sucesso se repetiu com sua chegada ao DVD e à televisão. Cada espectador, a sua maneira, descobriu e deu importância à película, seja para a história do cinema ou como uma espécie de terapia catártica para quem está assistindo. 

Ao completar vinte anos, Um Sonho de Liberdade continua a figurar nas principais listas de filmes de todos os tempos e a serem exibidos na TV. É um filme que adquiriu o status de permanecer na vida dos espectadores após a sua exibição, seja pela lembrança recorrente das cenas marcantes (e estas são muitas), ou pelo simples desejo de dizer algo sobre ele, mesmo sem revelar o que mais os tocaram, assim como Andy fez. E, a cada reencontro, estes mesmos espectadores são afetados por algo novo, assim como Andy afetou a vida de Red. Desejo não revelado, afeto e esperança continuam sendo bons ingredientes para quem sonha com a liberdade, nem que seja aquela que nos permite adaptar algumas coisas na vida. Um bom livro, por exemplo.

Confira o trailer:

Comentários

  1. Grande filme, sem dúvida, e uma ótima escolha para uma retrospectiva da obra de King para o cinema.

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