E Deus fez Marlon Brando - para nos confundir

Se vivo estivesse, Marlon Brando Jr. teria inteirado nove décadas de vida em abril. É difícil imaginar o que seria hoje o jovem fortão dos anos 1950 e o coroa charmoso das décadas de 70 e 80, que povoaram o imaginário de homens e mulheres (amantes do cinema ou não), mas é provável que ele estivesse ainda mais obeso e recluso, bem ao gosto de tantos outros astros e estrelas do passado, dos quais lembramos apenas quando estes se vão, quase centenários, na tranquila e/ou melancólica aposentadoria em mansões ou modestos quartos de pensão. Entretanto, Marlon não foi apenas um astro, mas um divisor de águas na arte da atuação no mundo do cinema, seu templo de consagração e desgraça. Brando foi como tantos outros colegas que tiveram por fardo a eternidade, o tipo de pessoa cujo poder era o motor da própria tragédia. Um príncipe que era amado e detestado em doses mais ou menos iguais e que por isso permanece no imaginário, apesar da morte. Este despretensioso ensaio é apenas um aperitivo para a mostra Eternamente Brando, que temos a honra de apresentar neste mês de julho, na Vila das Artes


Marlon Brando (1924-2004): um astro de cinema como não se faz mais


Por Gabriel Petter

No mundo do entretenimento, a distinção entre um artista e um astro pode ser feita tendo o talento como critério. Este (o talento) não é algo que possa ser determinado sem que se cometa algum tipo de injustiça. Mas só parcialmente. O intelecto se engana, os sentidos enganam, mas ambos não podem se lograr e nem serem logrados ao mesmo tempo. Ninguém precisa ser um expert em sétima arte para sacar, por exemplo, que Charles Chaplin foi um gênio, e que Jean-Luc Goddard é um dos maiores engodos da história cinematográfica. Não é preciso também queimar muitos neurônios para que alguém se toque que um astro como Reynaldo Gianecchini é chamado de ator apenas pela falta de outro nome para aquilo que ele faz, enquanto Lima Duarte, seu colega velho e feio, este sim é um ator que entende da coisa. 

Mas, e quando chegamos em Marlon Brando? Aí as coisas se complicam. Marlon é um desafio para a lógica simples, para a dicotomia. Até mesmo para os epítetos. Chamá-lo de grande ator é uma banalidade. Os superlativos soam triviais quando se fala dele, mas isso é compreensível. O melhor de todos os tempos? Exagero, é provável. Mas... em relação a quem? Nenhum ator/astro da sua geração se comparou a Brando. E nem antes e nem depois. Ok, se formos mais fundo, teremos uma coleção de monstros sagrados que poderiam lhe fazer frente, como Orson Welles (um gênio, mas não tão bonito), Gregory Peck (talentoso, mas nem um pouco bonito) ou Steve McQueen - não o diretor daquela bomba que ganhou o Oscar de melhor filme, mas o ator, bonito, talentoso e desaparecido precocemente, sem chegar ao imaginário popular de maneira tão sensível. Nenhum desses conseguiu reunir, ao mesmo tempo, beleza, talento e vocação para o estrelato como Marlon. Por isso afirma-se, com boa dose de razão, que ele foi único na história do cinema.

Marlon Brando foi um ser à parte no mundinho hollywoodiano. Não era só (muito) bonito como exibia também um dom quase sobrenatural para a arte da atuação. Sabe-se que ele era tão talentoso quanto indisciplinado, e muito do que se vê em seus filmes é puro improviso. Ninguém repara. Mesmo quando sua beleza se foi, tragada pela gordura excessiva, poucos lamentaram. É que Brando se impunha por sua arte e (sobretudo) pela sua personalidade atormentada e rebelde. Fez o que bem entendeu em O Último Tango em Paris (declarou em sua autobiografia que Bernardo Bertolucci não sabia o que estava fazendo), um daqueles exemplares filmes de ator; reza a lenda que ele humilhou o senil Charles Chaplin na única vez em que ambos trabalharam juntos, obrigando o decano do cinema (logo quem!) a pedir-lhe desculpas para que ele retomasse as filmagens. Em Apocalipse Now, película pela qual recebeu uma fortuna para aparecer por apenas alguns minutos - o que se repetiria várias vezes-, ordenou que não filmassem sua barriga saliente e que ele e o ator Dennis Hoper não contracenassem juntos, no que foi prontamente atendido.

Esses e outros abusos - incluso excessos contra filhos, mulheres e amantes, de ambos os sexos - constituem o lado obscuro da sua mente brilhante. Sim, muitas vezes Marlon foi um demônio, como adoram apontar seus detratores - alimentados pela indústria do escândalo (e alimentando-a, ao mesmo tempo), que sempre se manteve firme e forte no show business.  No entanto, Marlon não era do tipo que precisasse de bafafás para se manter na mídia, como Britney Spears, Justin Bieber ou Angelina Jolie, por (má, mas pertinente) comparação. Como boa parte dos homens do seu tempo, tinha preocupações políticas genuínas, que o fizeram trabalhar de graça (ou quase) em determinados filmes, apenas por conta dos temas que estes abordavam, enquanto levava "nas coxas" trabalhos mais comerciais, encarando certas bombas (até ele já trabalhou em filmes ruins) apenas por dinheiro. No fundo, Marlon levava sua arte muito a sério, mas detestava o star system, que transformava a vida de um artista num extenuante espetáculo e a sua obra num objeto de consumo. Como a sua própria vida, uma tragédia acompanhada ao longo de décadas de carreira cheia de altos e baixos, episódios terríveis - o suicídio de uma filha e a prisão de um filho - e uma decadência física que parecia refletir as idiossincrasias de uma vida de excessos.Tudo a sua revelia, ele que odiava expor sua vida pessoal. O que, por incrível que pareça, atiçava ainda mais a curiosidade de "biógrafos" e outros xereteiros profissionais. Não há jeito: astros estão na chuva e têm que se molhar.

Marlon Brando saiu de cena numa época em que a atuação é um detalhe num establishment hollywoodiano dominado por astros que usam o passado "difícil" como exemplo de superação e aval para seu talento medíocre, além de estratégias politicamente corretas - mas moralmente questionáveis e banais - como formar famílias adotivas e multi-raciais. O escândalo e a pieguice finalmente venceram. Lamento, mas é provável que você e eu estejamos mortos e enterrados antes que surja alguém como Marlon. Que pena.

O Grupo 24 Quadros realiza, no mês de julho, a mostra Eternamente Brando. Excepcionalmente nessa semana, por conta da Copa do Mundo, nossa primeira sessão será na quinta-feira, dia três de julho, na Vila das Artes. 




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