Plano 9 do Espaço Sideral: cada filme tem o diretor que merece

Não havia nada de especial no frio 10 de outubro de 1924, em Poughkeepsie, Nova York, quando Edward Davis Wood Jr. veio ao mundo, como o filho varão e único do modesto Edward Sr., carteiro, e de Lilian, (presumivelmente), dona de casa. Aliás, parece não ter havido mesmo nada de notável nesse dia no resto do mundo, salvo o fato - um tanto insuspeitado - do natalício de Charles Edmund Dumaresq Clavel, mais conhecido como James Clavell (1924-1994), reputadíssimo escritor e diretor anglo-americano que se destacou em filmes como Ao mestre com carinho e A mosca da cabeça branca, este, refilmado nos anos 1980, por David Cronenberg.

Felizmente, Edward (apesar do nome pomposo) não seguiria a respeitável carreira do seu colega de profissão. Enquanto James recebia excelente instrução em seculares instituições britânicas, Ed tinha que viver sob o conflito de identidade advindo da perturbação da sua mãe, que, decepcionada com o fato de não ter tido uma menina, vestia o pobre garoto com roupas de mulher - e tratava-o como tal. A bizarrice era umas constante em sua vida. Por outro lado, havia o cinema. Estamos falando de uma época dourada para a sétima arte nos Estados Unidos, onde nosso pequeno herói, cinéfilo que era, podia se deliciar com os westerns estrelados por John Wayne (1907-1979) ou com todo tipo de produção disponível por algumas moedas. Entretanto, o grande ídolo de Wood era mesmo Orson Welles (1915-1985), cujo caminho se cruzou com o seu apenas no belo longa que Tim Burton dedicou ao chamado "pior cineasta de todos os tempos".


Ed Wood, Mr. Cinema Trash

Ed Wood não é o tipo de artista-protótipo que costuma inspirar respeito à simples menção do seu nome. Muito pelo contrário: inculto, leitor voraz de histórias em quadrinhos e de livros de baixo calão, viciado em sexo, drogas e (não, o rock'n'roll ainda não era um elemento indissociável da sagrada tríade da subversão) álcool, não seguiu os cânones que faziam a reputação de um artista do seu tempo, mas nem por isso teve uma existência menos nebulosa e bizarra. Enquanto Michael Jackson nem sonhava em apavorar a parte mais sensível do seu público com suas excentricidades, Wood dirigia e atuava vestido de mulher, assustava os incautos retirando a ponte móvel que disfarçava os dentes a menos - perdidos durante a Segunda Guerra Mundial, quando o então combatente se espremia num uniforme que ocultava sutiãs e calcinhas por baixo - e adotava vários (pelo menos sete) pseudônimos, dentre os quais Akidov Telmig, o qual, lido de trás para frente, significa "Vodka Gimlet".

É claro que não se poderia esperar um Cidadão Kane de Ed Wood. Ponto para o cinema, que teve a honra de conhecer um dos maiores gênios por trás do que hoje se chama Cinema Trash. Nesse quesito, Ed ainda parece ser imbatível. Enquanto Welles expandiu os limites da sétima arte para o que ela poderia oferecer de melhor, o "pior diretor de todos os tempos" fez exatamente o caminho inverso, com toda a dignidade que seu feito merece. E, se determinadas películas fazem a glória de um realizador (no caso de Welles, justamente, Cidadão Kane), especialmente pelos desdobramentos que as mesmas provocam na compreensão da sétima arte - e da arte como um todo - e pelas lendas que as cercam, a obra-prima de Ed Wood (segundo o próprio), Plano 9 do Espaço sideral (Plan 9 from Outer Space, EUA, 1958), só poderia ser o resultado do talento de alguém tão estranho e irresistível quanto este filme delicioso.

Imagine um diretor convencendo todo o seu elenco a se converter à religião batista, com o objetivo de conseguir uma grana dessa denominação religiosa para seu filme. Pois essa foi só uma das palhaçadas envolvidas na produção de Plano 9. Aliás, estas começaram bem antes, pois Ed escreveu todo o roteiro, como de praxe, bêbado. A escolha do elenco foi outro atestado de falta de bom-senso. Além de contar com um pobre Bela Lugosi em fim de carreira, a qual seria tristemente abreviada por uma overdose de morfina, ainda no início das filmagens, Wood escalou figuras excêntricas, como a apresentadora de tv Vampira, que, aliás, só topou atuar se não tivesse que falar nada (como se precisasse!) e o advinho Criswell, que solta uma das maiores pérolas já saídas de um roteiro cinematográfico: "E lembrem-se, meus amigos, que acontecimentos futuros como estes irão afetá-los no futuro."


Sequência de Plano 9 do Espaço Sideral, com destaque para Vampira


Como toda obra pretensiosa que se preze, Plano 9 inicia com o tom apocalíptico adequado à espetacular estória envolvendo uma invasão alienígena temperada por uma horda de zumbís vagando por todos os lados. Desde o primeiro minuto, o riso já aflora e, pouco tempo depois, não é mais possível prestar atenção à "trama", tão absurdos são os defeitos de toda ordem que insistem em aparecer ao longo dos seus escassos 79 minutos. Só para se ter uma idéia: Bela Lugosi tinha morrido com apenas duas cenas gravadas. Nada que uma substituição não resolvesse, mas, prevendo a publicidade em torno do "último filme de Bela Lugosi" e sem poder se dar ao luxo de gastar dinheiro filmando mais sequências, Ed resolveu colocar o massagista da sua namorada para dar continuidade às imagens de Lugosi, embora o sujeito fosse muito mais alto e jovem do que o recém-finado ator. Qual foi a solução encontrada para o espectador não notar a diferença?Filmar todas as sequências com o não-ator (um entre tantos) encobrindo o rosto com uma enorme capa. Claro que o resultado foi risível, mas, no conjunto, até passa batido, tamanhos são os "defeitos especiais", como discos voadores feitos com pratos e segurados com barbantes visíveis na tela ou o uso de imagens surradas, roubadas de antigas propagandas do exército americano, usadas para ilustrar o combate à invasão alienígena.

Todavia, o mais engraçado é que Plano 9, definitivamente, não cansa o espectador. E nem mesmo é um filme ruim. Ou melhor: é um ótimo filme ruim - no sentido da precariedade produtiva. Além disso, ele não é puro entretenimento. Trabalhos como esses constituem uma profícua e ainda mal-explorada vertente de investigação estética, onde nossos conceitos de beleza - sobretudo aqueles herdados da filosofia clássica grega - são questionados, cumprindo, assim, a função primordial da arte, isto é, nos tirar do conforto das idéias-feitas, do comodismo, enfim. Dessa forma, Plano 9 (ainda que por vias tortas) entra no panteão das  grandes obras do cinema moderno, em paridade, sim, com trabalhos do quilate de Cidadão Kane. E, se este filme é o que é, é pela mesma razão pela qual Plano 9 do Espaço Sideral pode ser considerada uma película relevante: os grandes diretores por trás dos mesmos. Os resultados podem ser diferentes, mas isso não significa qualquer demérito para Welles ou Wood. Cada filme tem o diretor que merece.

Gabriel Petter 

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