A Verdade de Chester Gould

No dia 20 de novembro de 1900 nascia Chester Gould, que criaria, 31 anos depois, um dos mais interessantes e longevos personagens dos quadrinhos, Dick Tracy, detetive que usa a investigação metódica para resolver os casos nos quais se envolve. Em mais de oito décadas de história, Tracy já foi adaptado para o rádio, a televisão e o cinema, no qual ganhou bela homenagem do ator e diretor Warren Beatty, fã confesso de Dick - e, por extensão, de Gould. Dick Tracy será exibido nessa sexta-feira na Vila das Artes, dentro da programação da mostra Quadrinhos no Cinema. E para situar o leitor na história da criatura, falamos um pouco sobre o criador, Chester Gould (1900-1985), brilhante profissional da chamada nona arte que fez da sua obra uma profissão de fé nos quadrinhos, que lhe renderam, com todo mérito, milhões de dólares. O texto é assinado por nosso colaborador Eduardo Pereira, versado na fascinante arte das Hq's e um dos curadores da mostra de janeiro

Chester Gould em seu ambiente de trabalho. Os quadrinhos não eram apenas um passatempo, mas uma autêntica profissão de fé para o artista (Fonte: Revista Life)
 
Por Eduardo Silva


Chester Gould nasceu em 21 de novembro de 1900 na pequena cidade de Pawnee, no Estado de Oklahoma, onde existe até hoje uma estrada de ferro construída durante os primeiros anos da vida do artista. Seus pais eram Allice Miller e Gilbert R. Gould, funcionário de uma gráfica.

Aos sete anos, o pequeno Gould teve seu primeiro contato com as histórias em quadrinhos e as caricaturas em jornais - na época, ambos eram publicados exclusivamente nos noticiários impressos - que ele lia compulsivamente. Entretanto, insatisfeito com o mero papel de leitor, Chester copiava e adicionava novos diálogos às charges e comics consumidos. Em 1908 seu pai, que notara o talento do garoto para o desenho, levou-o a um congresso do partido democrata, onde Gould desenhou uma série que retratava cenas do evento. Esses trabalhos impressionaram um velho advogado presente à convenção, que se dispôs a comprar algumas obras do jovem talentoso. Aos catorze anos, Chester participou de um concurso promovido por uma revista especializada em cinema e animação, com premiação em dinheiro. O futuro criador de Dick Tracy foi o vencedor, assim como de outro certame da mesma natureza, no ano seguinte. 

Em 1918, próximo dos 18 anos, Gould começou a fazer desenhos e caricaturas para uma publicação amadora da escola onde ele estudava. Pouco tempo depois, se tornou editor e chargista do The Tulsa Democrata, no qual realizou uma série de charges que tiveram expressiva repercussão junto ao público. No ano seguinte, já morando com a família na cidade de Stillwater e frequentando o curso superior de Comércio e Marketing, foi contratado pelo jornal Daily Oklahoma para desenvolver uma série em quadrinhos inspirada em artistas de esportes variados, obtendo, uma vez mais, invulgar êxito.

Entretanto, Gould não estava feliz com sua situação. Sua objetivo maior era produzir Hq's para um grande jornal. Por isso, em 1921, decidiu se mudar para Chicago. Obteve registro profissional de chargista e editor e, munido desses documentos - e de muita coragem e talento, partiu para a cidade grande. Lá chegando, alugou um pequeno quarto, comprou uma prancheta, materiais de desenho e correu com seu portfólio sob o braço para mostrar aos editores do poderoso Chicago Tribune do que ele era capaz. Para sua infelicidade, o jornal não lhe deu a posição almejada. Mas Gould não era de desistir fácil. Um ano depois, o jovem soube que a mesma empresa procurava um desenhista para o seu setor de arte. Mais uma vez Gould apresentou seu portfólio, deixando o responsável pela seleção de queixo caído com a qualidade dos seus desenhos. Chester foi efetivado no emprego, recebendo a vultosa (à época) quantia de U$$ 50 semanais, basicamente ilustrando propagandas. Enquanto isso, sempre que possível, apresentava ao editor J. M. Patterson seus projetos de histórias em quadrinhos, invariavelmente recebidos com indiferença. 

Criador e criatura: Chester Gould e Dick Tracy, o herói que se valia da inteligência para resolver crimes

Em 1923, Gould tirou diploma em Comércio e Marketing pela Northwestern University, abandonou o emprego insatisfatório no Chicago Tribune e conseguiu, enfim, o trabalho como cartunista, no diário Evening American, contratado com o vencimento de U$$ 60 semanais. Na nova empresa, desenvolveu sua primeira tira em quadrinhos, intitulada The Radio Cats, que misturava aspectos de funcionamento de uma rádio, elementos da fábula e toques de aventura cômica. Além disso, tinha que elaborar uma lista das melhores peças que estavam em cartaz na cidade, bem como caricaturas dos grandes astros das mesmas. Não obstante, mesmo com o novo bom emprego, Chester ainda continuava a enviar projetos de Hq's para J. M. Patterson, que, como sempre, vetava os projetos do ex-empregado tão logo lhe chegavam às mãos. 

Ao mesmo tempo em que a vida profissional de Gould ia bem, ele conhecia sua futura esposa, Edna Gauger, a qual desposaria em 1926. No ano seguinte nasce a primeira filha do casal, Jean. O casal decidiu mudar para a cidade de Wilmette, em Illinois.

Em 1928, Gould se demite do Evening American e passa a dar expediente no concorrente Daily News, realizando o mesmo tipo de trabalho que costumava fazer na empresa anterior, o que incluía uma nova tira em quadrinhos, intitulada The Girl Friends.No entanto, Gould não escondia de ninguém que seu grande sonho era mesmo ter seus quadrinhos publicados no Chicago Tribune. Motivado por essa aspiração, enviou, em esforço titânico, cerca de sessenta propostas nesse sentido para o inflexível Patterson. No meio de tanta coisa impiedosamente jogada na lata do lixo, o editor se interessou por uma proposta chamada Painclothes Tracy, que consistia nas crônicas de um detetive particular numa Chicago então infestada de gângsteres. Petterson marcou uma reunião com Gould em trinta de agosto de 1931, onde finalmente se fechou a primeira Hq assinada por Gould para o  Chicago Tribune. No entanto, o contrato foi fechado sob algumas condições, dentre as quais a redução do título original, o que explica o nome Dick Tracy. Em seu arroubo centralizador, Patterson chegou a sugerir a ideia da primeira estória do detetive. Em quatro de outubro de 1931, surge a primeira estória de Tracy, no jornal Detroit Mirror, que pertencia ao Chicago Tribune. No meio tempo em que se reuniu com Petterson e publicou sua primeira tira, Gould frequentou cursos de Criminologia com o professor Calvin Goddard e passou a frequentar o laboratório de criminologia de Chicago. Seu objetivo era obter subsídios para as aventuras de um profissional dedicado à investigação sistemática de crimes.

 

Assim na vida como na morte: o túmulo de Chester Gould traz a sua maior criação como uma espécie de epitáfio simbólico da sua vida dedicada à nona arte
 

Dick Tracy rapidamente se tornou um sucesso de público, passando a ser distribuído por vários jornais norte-americanos, o que rendeu enormes dividendos ao seu criador, que adquiriu uma fazenda no Estado de Illinois, onde elaborava cuidava da família e elaborava novas Hq's. Entre os anos 1940 e 1950, o quadrinho gerou muitos subprodutos, incluindo programas de rádio, seriados de televisão e de cinema. Gould foi alçado à condição de celebridade e era figurinha carimbada em programas de televisão desse período.

Com o passar dos anos, Chester Gould incrementou o material de pesquisa para dotar suas estórias de maior realismo, o que garantiu a sobrevivência de Dick Tracy entre os leitores. Mas após se dedicar por mais de 46 anos a sua maior criação, em 1977, aos 77 anos, Gould pendurou as chuteiras, embora jamais deixasse de acompanhar o andamento do seu quadrinho mais famoso. Em 11 de maio de 1985, deixou o mundo confortavelmente. Seus restos mortais descansam no cemitério de Oakland, próximo à fazenda da família Gould, tendo como epígrafe simbólica uma ilustração de Dick Tracy. De fato, ambos são imortais.

Eduardo Pereira atua no Grupo 24 Quadros e na Gibiteca Dolor Barreira. Nessa sexta-feira, dia 24 de janeiro de 2014, o Grupo 24 Quadros exibe o longa Dick Tracy (1990), de Warren Beatty, dentro da programação da mostra "Quadrinhos no Cinema", que segue até o final do mês na Vila das Artes - Rua 24 de Maio, Centro, Fortaleza, Ceará. 

Comentários

  1. Caro Eduardo, Valeu pelo texto... gosto muito de ler alguma coisa antes de assistir a um filme, pois acho fico mais embasado e esse seu texto nos ajuda muito... Valeu, meu chapa...

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  2. Muito interessante fazer um estudo sobre a vida do personagem para localizar os espectadores do filme. Muito bom, Eduardo.

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