Sam Peckinpah: "Morte não é Brincadeira"

Uma das obras-primas de Sam Peckinpah, Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia abrirá a mostra dedicada ao mestre estadunidense, em memória dos 30 anos do seu desaparecimento. O evento ocorre durante todo o mês de setembro na Vila das Artes. No texto abaixo, um pouco do roteirista, produtor e diretor que conferiu ao subestimado western a aura de produto artistico e que figura entre os realizadores a quem o público contemporâneo conferiu a aura de cult. Peckinpah sem dúvida merecia mais, mas a pecha de maldito, por paradoxal que pareça, nos dias de hoje faz bem


Gênio maldito: Sam Peckinpah é homenageado com retrospectiva esse mês, na Vila das Artes
por Gabriel Petter

Sam Peckinpah (1925-1984) não gostava de violência. Pelo menos não do jeito que seus admiradores e seus detratores imaginam. Numa coletiva de imprensa a respeito de Meu Ódio Será sua Herança (Wild Brunch, EUA, 1969), o realizador confessou que assistir a esse filme era uma experiência difícil. Em resposta a uma pergunta idiota – desculpas pela falta de fleuma – na mesma coletiva (“Por que este filme foi feito?”) Peckinpah não se fez de rogado: “quero mostrar a violência em termos reais. Morte não é brincadeira”.  
Daí, talvez, a parcial injustiça do epíteto “poeta da violência”, que lhe foi atribuído. Antes de tudo porque, se há poesia na violência, isto tem mais a ver com uma leitura moral da mesma do que com qualquer proposição estética. Segundo, porque Sam não queria dotar de beleza aquilo que não era inerentemente belo. Acima de tudo, porque a violência não era um fim em si mesma na  extraordinária obra do filmmaker estadunidense.
Peckinpah tinha um grande respeito pela morte – “Morte não é brincadeira” disse ele, é bom não esquecer –, talvez mais do que tinha pela vida. Pela sua própria, especialmente. Gênio incontestável, capaz de transformar a experiência de assistir a um western numa sessão de catarse artística, Sam era um consumidor imoderado de álcool e drogas. Estreou no cinema em 1954 como dialoguista e tentou encetar uma carreira como ator. Feioso, o descendente de índios paiutes não teria vez no star system hollywoodiano. Por sorte, seu maior talento não era criar tipos para vender fofocas para fãs.   
Assinou seu primeiro roteiro com um faroeste bobinho dirigido e estrelado de maneira desastrosa pelo então decadente Marlon Brando. Ninguém jamais lembraria de Peckinpah por algo como A Face Oculta (1960). Nem ele mesmo, considerando tudo o que realizaria depois. Sobretudo no final da sua errática carreira, marcada pela estupidez da crítica, a rejeição do grande público e pelo auge da sua maturidade artística.
É no ocaso da sua curta vida e obra que surge uma das suas maiores realizações, o inclassificável Tragam-me a Cabeça de Alfredo García (Bring me the Head of Alfredo García, EUA/MEX, 1974). O último filme de Peckinpah – que faleceu no ano do seu lançamento – foi o resultado de uma conjunção de fatores, a grande maioria desfavoráveis ao diretor: agravamento do seu alcoolismo, descrédito junto aos grandes estúdios norte-americanos e o recrutamento de uma equipe técnica inexperiente – tudo o que o parco orçamento, oriundo de uma parceria com dois estudos mexicanos poderia prover.
Em compensação, este foi o único dos filmes de Peckinpah sobre o qual ele teve controle do corte final e esse detalhe é revelador: é em condições como estas, marcadas pela escassez de recursos e por maior liberdade artística que é possível perceber a importância e a genialidade de um diretor. Tragam-me a Cabeça de Alfredo García não foi exatamente um sucesso em sua época, mas demonstra à perfeição o talento de Sam e a radicalidade da sua proposição estética. Assim como outros realizadores de carreira tormentosa e talento acima da média, Peckinpah não queria apenas entreter o público, mas transformar o ato de assistir a uma película numa experiência para além da pura evasão.
Nesse sentido, tudo vale: emprego de várias câmeras em velocidades diferentes, diálogos improvisados, muitas externas e crueza imagética. Nem tudo foi intencional: a irregularidade da iluminação, por exemplo, foi mais fruto da inexperiência do diretor de fotografia, Alex Phillips Jr, do que uma decisão prévia de Peckinpah, que pode ser reconhecido nos enquadramentos rigorosos, no texto ácido, com sucessivas quebras na trama, e na montagem, que leva o espectador a um crescendo de tensão que resulta num final eletrizante.  
Outro aspecto que marca a direção de Peckinpah é a escolha dos seus elencos. No caso de Tragam-me a Cabeça de Alfredo García, o destaque absoluto é o ator Warren Oates (1928-1982), que construiu um pianista fracassado e caçador de recompensas desastrado inspirado no próprio Sam. Sua trajetória de “redenção” em sua missão de trazer a cabeça de Alfredo para uma poderosa família mexicana  digna dos mais memoráveis road movies. Pena que o ator teve o (enorme) talento tão subestimado quanto a própria obra de Sam Peckinpah.

Completamente alucinado: Warren Oates, em Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia, diretamente inspirado em Sam Peckinpah
              O último filme de Peckinpah encerrou uma carreira digna dos grandes mestres da sétima arte de todos os tempos. Pena que nem essa obra-prima e nem o seu realizador ainda encontraram a dignidade que merecem na história do cinema. Mas esta é feita de injustiças, nunca esqueçamos. 

Confira o trailer:
https://www.youtube.com/watch?v=HPaUPU9xdgM
Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia será exibido nessa sexta-feira, dia 5 de setembro, na Vila das Artes, dentro da retrospectiva dedicada ao realizador estadunidense Sam Peckinpah, uma realização do Grupo 24 Quadros, com apoio da Vila das Artes. Entrada franca.

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