Sexo, mentiras e videotapes

VOUYERISMO ELETRÔNICO NUMA TRAMA MORALISTA
 
O ano é 1989. O cenário, o suntuoso Palais des Festivals, em Cannes, onde ocorre a final da quadragésima terceira edição do festival homônimo, na região de Côte d'Azur - onde até a extensão das praias é privada. Em competição, longas-metragens incensados, como o lacrimejante Cinema Paradiso e uma modesta produção do cinema independente americano, de baixo orçamento (cerca de U$$ 1,8 milhões de dólares), título provocativo e conduzida por um estreante. O júri, presidido por Win Wenders, não teve dúvidas: premiou seu diretor, Steven Soderbergh, o mais jovem a receber a Palma de Ouro (tinha vinte e seis anos à época), assim como o também jovem ator (29 anos, então) James Spader e o próprio filme, que completa 24 anos como um dos mais memoráveis dos anos 1980.
 
Sexo, mentiras e videotape não é um filme emblemático apenas por ter sido tão laureado na (quiçá) mais memorável das edições do badalado festival francês. Para muitos, ele expressa o contexto específico de um país (Estados Unidos) que voltava às mãos dos temidos republicanos e vencia, a duras penas, o equilíbrio de poder com a decadente União Soviética, que alguns meses mais tarde ruiria sob a pressão de um povo cansado das décadas de opressão do regime comunista, anunciando o triunfo do neoliberalismo e da irracionalidade do capitalismo sem amarras. Não poderia haver momento mais propício para abordar uma temática das mais polêmicas na civilização ocidental: a sexualidade. Como fazê-lo sem nudez, cenas explícitas ou outros recursos que atraíssem a atenção imediata do espectador?
 
 
Cartaz do filme: aclamado em Cannes
 
 
Reza a lenda que Soderbergh concebeu Sexo, Mentiras e Videotape durante uma viagem a Los Angeles, pretendendo realizar um filme "moderno, chique e sofisticado" (sic). Consta que o cineasta acabara de sair de uma relação sofrida por conta das traições que cometeu contra sua namorada à época e que Graham, o enigmático personagem central da história, seria uma espécie de alter ego do próprio Soderbergh. O diretor teria se trancado, durante oito dias, num quarto de hotel em L.A., de onde saiu com o roteiro completo do longa.
 
Lendas à parte, o interessante é perceber a maneira sutil como o Steven trabalha sua história, onde o sexo, permeado pela culpa (sim, estamos numa época em que a AIDS devastava o sonho do "amor livre"), é abordado à maneira distanciada de quem prefere fechar-se em si próprio do que se expor às vicissitudes de uma relação concreta. Dessa forma, o personagem principal, o desempregado (quase um criminoso na era Reagan) Graham Dalton, recorre ao vídeo como instrumento para satisfazer suas fantasias, excitando-se com os depoimentos de mulheres acerca da sua vida sexual. Declarando-se impotente - talvez fosse mais exato falar "asceta" -, retorna a sua cidade de origem, um lugarejo no sul dos Estados Unidos, onde a pacata vida de seu amigo de infância, o advogado John Mullany, da  sua esposa, a frígida dona de casa Ann Bishop e da irmã desta, Cynthia, uma espevitada bartender, serão abaladas pelo jovem sexy, de aparência inofensiva, portando uma câmera de vídeo e uma caixa lotada de fitas usadas.
 
O que há de tão potencialmente explosivo na relação entre esses personagens é a trama na qual os mesmos estão enredados. John Mullany, um típico representante do yuppismo, com seus ternos feitos sob medida, vive um tórrido affair com sua cunhada, enquanto sua infeliz esposa recorre a um analista para dar conta dos seus dilemas existenciais - onde o sexo ocupa espaço privilegiado - e procura levar a vida "estável" que o casamento propicia para uma mulher branca e protestante do sul dos Estados Unidos.  Ao conhecer melhor o misterioso e encantador amigo de infância do esposo, não resiste às suas ideias em relação à sexualidade, à possibilidade de viver uma vida sexual onde o contato físico (ou puramente físico) não tenha a primazia da qual sempre gozou, priorizando-se a mente, o imaginário, aquilo que só pode ser acessado mediante sofisticados recursos intelectuais que não são acessíveis à maioria das pessoas.
 
A referência ao cinema mudo não é mera coincidência, pois Soderbergh via no mesmo um cinema inteligente, onde as ideias mais sutis eram transmitidas com simples gestos e olhares. O recurso ao vídeo também não é casual: afinal, estamos falando de uma sexualidade acessível no campo do imaginário, que ainda hoje é formada basicamente pela produção e veiculação de imagens registradas.
 
Não nos enganemos: não estamos diante de uma obra subversiva e esse é um dado interessante tanto para se compreender a obra quanto a sua época. Não é novidade que a década de 1980, a despeito do saudosismo que a mesma desperta atualmente, foi um dos períodos mais conservadores em relação a quase todos os aspectos da vida social e boa parte da filmografia da época - mesmo filmes de horror como Poltergeist - possui um fundo moralista que remonta à busca de novos valores face à decadência dos ideais da geração hippie, do comunismo e do (temporário) triunfo do sistema capitalista enquanto gestor das relações sociais, marcadas pelo pragmatismo e pelo abandono (parcial) das utopias coletivistas. Isso não invalida Sexo, Mentiras e Videotape, que, com sua apologia a formas mais "sofisticadas" de sexualidade, não escapa à regra, mas isso não o invalida de forma alguma enquanto obra cinematográfica e nem o torna insosso. Muito pelo contrário: é justamente a capacidade que Soderbergh possui para prender a atenção do espectador durante todo o filme lidando com uma trama aparentemente tão simples que lhe rendeu o merecido reconhecimento internacional. E é o talento em dar um caráter universal e transcendente a um drama restrito a poucos personagens que o torna num mestre da sétima arte.
 
 
Gabriel Petter


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