Ensaio: Walter Hugo Khouri não Era Gênio, mas Era Bom Demais Para o Brasil


Se você acha estranho que um artista brasileiro talentoso normalmente encontre receptividade no exterior, enquanto seu país o ignora absolutamente, saiba que essa é uma espécie de tradição cultural desse recanto dos trópicos onde o trabalho, o conhecimento e a competência são preteridos pela sociabilidade de boteco e pelos laços de fidelidade forjados na unidade de pensamento e na apropriação do Estado em prol de grupinhos os quais chamamos carinhosamente de “panelas”. Num lugar onde o individualismo é confundido com egocentrismo e a amizade vira um critério de competência, seria mesmo difícil alguém como o paulistano Walter Hugo Khouri (1929-2003), pouco afeito à demagogia cinemanovista e comprometido tão somente com a sua própria arte, ser valorizado. Procuramos, nesse ensaio, dar uma dimensão da obra de um dos mais talentosos cineastas brasileiros, que será homenageado em mostra retrospectiva nesse mês de março pelo Cineclube 24 Quadros




 Walter Hugo Khouri: gênio? Que nada! Ele só fazia seu trabalho bem-feito

Por Gabriel Petter

Há alguns anos, quando eu estudava cinema, por ocasião da apresentação dos projetos que, teoricamente, disputariam de maneira justa qual seria realizado em equipe na escola, defendi uma ideia bem simples, um documentário que não era absolutamente nada de mais. Não obstante, ela (a ideia) foi sumariamente rejeitada. Lembro até hoje qual foi o argumento infalível que uma das colegas usou para desqualificar “carinhosamente” meu curta. Ela disse, sem tirar e nem pôr uma única palavra: “Seu projeto é bom demais para ser feito aqui”. 
     
Bingo! De maneira mordaz foi-me revelada a estranha - e amiúde sub-reptícia - lógica do fracasso que é uma espécie de elemento cultural do nosso país. Aquela frase não poderia traduzir melhor o que, en passant, se resume na seguinte cadeia explicativa: brasileiros em geral veem com maus olhos o trabalho duro e a concorrência justa; normalmente, as pessoas que apresentam habilidades extraordinárias esforçaram-se muito para desenvolver determinadas aptidões e, inevitavelmente, acabam se destacando num meio naturalmente medíocre; estas pessoas representam uma ameaça para quem sabe que não tem condições de lhes fazer frente, a não ser recorrendo a expedientes escusos, logo:  os melhores devem sair; os medíocres, predominar. Estes, para chegar aos seus objetivos (sem o devido esforço) cercam-se de amigos e protetores; aqueles, sem talento para puxa-saquismos ou expedientes do tipo, não conseguem atingir mais do que um círculo restrito de pessoas – e olhe lá! 

Subsiste, porém, a aura da genialidade. No Brasil, esse mito funciona como uma espécie de compensação póstuma ou serve como meio de consagração de quem, não obstante a gritante falta de habilidade e/ou conhecimento, sabe tirar partido do círculo de amigos influentes. Destarte, Lima Barreto, excelente escritor, porém, mulato, pobre e alcoólatra, foi gênio porque terminou seus dias num leito de hospício, enquanto José de Alencar, escritor medíocre, mas filho de Senador do Império, foi alçado à condição de grande romancista brasileiro. Machado de Assis foi um caso à parte de mulato que aliou ao talento a consciência da necessidade – pelo menos para ele – de se acomodar à realidade. Sua situação era uma espécie de paródia do que a sua personagem Quincas Borba (alter ego?) denominava Humanitismo, uma pseudo-filosofia que satirizava o princípio da predominância dos mais fortes - herdado de um Darwinismo capenga.

Por outro lado, genialidade em nosso país ainda contaminado pelo vírus novecentista europeu da busca das “raízes”, frequentemente significa a tentativa de reinvenção da roda, normalmente para a carroça de bois de um grupinho só. O mesmo José de Alencar virou gênio porque sua empreitada literária procurou “inventar o Brasil” para a minúscula camada da população brasileira que sabia ler e escrever.  Glauber Rocha, cineasta troncho, mas também considerado gênio, sonhava filmar algum dos romances do escritor cearense. Eram irmãos de alma, sem dúvida. Ambos, em sua pretensão megalomaníaca de parirem a história e a cultura do país, só conseguiram transformar isto em folclore e exotismo. Algo estranho tanto para estrangeiros quanto para seu próprio povo.

Em tal cadinho intelectual estabelece-se uma lógica eminentemente paradoxal – ao mesmo tempo em que se busca a valorização das temáticas nacionais e coletivistas, procura-se também a aprovação externa e conduz-se tal processo a partir da simultânea absorção de tradições estrangeiras - europeias-ocidentais, sobretudo - e da sua assimilação como "coisa nova". E tome derivativos de Goddard (outro cineasta ruim, amigo de Glauber Rocha, por sinal) e similares, pura forma sem conteúdo, posto que não há apropriação de fato. Por outro lado, em respeito à longa tradição caudilhista latino-americana, o caminho para o artista chegar aonde o "povo" - gozado como essa categoria parece ser sempre exterior a qualquer cidadão brasileiro - está em nosso país (pelo menos em termos de sétima arte) frequentemente passa pela associação e promiscuidade com o poder. Glauber Rocha,  por acaso, fez um filme celebrando a chegada de José Sarney ao governo da sua Capitania Hereditária - Maranhão 66 - e tinha acesso, juntamente com a patota cinemanovista, a fartos recursos da Embrafilme, estatal cujo maior acionista era o governo (ditatorial) federal.

Nessa miscelânea de  má política e péssimo cinema restava (e ainda resta) pouco espaço para as coisas simples e cotidianas, mais próximas dos problemas que você e eu enfrentamos todos os dias. Restava menos espaço ainda para os indivíduos, posto que as metanarrativas (o termo eu empresto a Marc Jimenez) das "antenas da raça" - adjetivo corrente na segunda metade do século passado, referindo-se aos "grandes nomes" da cultura nacional - privilegiavam as personagens arquetípicas ou os temas históricos - ambos devidamente romanceados, deveras distantes da realidade vigente, o que não deixava de ser outra forma de escapismo e alienação. E, pior que tudo, a inversão e perversão de valores relativos à qualificação de obras artístico-culturais correu solta, chegando ao ponto de se condenar os grandes estúdios nacionais, como a Vera Cruz, pela qualidade técnica dos seus filmes, enquanto trabalhos mal-feitos e sem qualquer sentido ganhavam o status de obras "revolucionárias". Se a fruição de música em nosso país foi substituída pela hermenêutica das letras de canções (e a música em si que se dane!), o cinema se transformou em objeto de estudo multidisciplinar das ciências humanas e distintivo sócio-intelectual. Já não interessavam os filmes em si e nem os aspectos inerentes à própria obra cinematográfica, mas algo exterior às películas - a alusão, ainda que vaga, à teorias filosóficas, antropológicas, psicológicas etc., que privilegiavam a dimensão conceitual das produções, como se tudo fosse uma questão de geração de ideias. Dessa forma nasceram o cinema de mediação - aquele no qual o filme é o que menos importa, face aos "conceitos" desenvolvidos no mesmo - geralmente incompreendidos pela imensa maioria do público - e as figuras do crítico e do diretor (ambos frequentemente confundidos, vide os casos de Goddard e Glauber Rocha) como personagens maiores do que a sua própria obra. Nesse contexto, multiplicaram-se os críticos proselitistas, os filósofos de boteco e... os gênios - boa parte destes recusando peremptoriamente tal atributo.
         
Walter Hugo Khouri (1929-2003) foi tragado nessa onda. Sem dúvida um dos mais talentosos profissionais da história da sétima arte do Brasil, o cineasta, produtor e fotógrafo morreu há mais de uma década e está com a maioria da sua obra fora de catálogo. Por conta disso, é gênio - póstumo. Seus filmes nunca foram ininteligíveis e são, evidentemente, tributários da tradição europeia à qual o menino paulistano, filho de pai árabe e mãe italiana, tinha acesso, ao lado de películas norte-americanas, nas salas de cinema da maior e mais cosmopolita cidade do país. Ainda assim, foi acusado de ser mero copiador de filmes estrangeiros, como se boa parte da filmografia dos seus detratores não passasse de macumba (mal-feita) para júri de festivais internacionais. Como não havia o que criticar, em termos técnicos, em seus filmes, alegava-se que seus roteiros - tomados de um ponto de vista literário - eram vagos, sobretudo em relação aos diálogos. Cobrava-se de um instrumento técnico centrado na ação um papel literário que não lhe cabe, definitivamente.

Muito se fez para desqualificar artistas como Walter Hugo Khouri e outros que não queriam dar a sua obra (nem a si próprios) uma estatura maior do que estas realmente tinham. Falando sobre a qualidade da sua filmografia em si - seja em termos técnicos ou artísticos, ficava difícil. Apelou-se então para a covardia das acusações infundadas, das exigências "propositivas" com relação aos seus trabalhos, às alegações de todo o tipo que mal ocultavam a inveja e o despeito para com seu trabalho bem-feito. E é exatamente isso o que mais incomoda por aqui. A competência, para nós, funciona como um catalisador de invejas e mesquinharias, assim como uma ameaça constante a quem não quer se esforçar para chegar onde pretende. É claro que alguém como Walter despertaria esse tipo de sentimento. Ele não era nenhum gênio, e sabia disso. Conceder-lhe tal dignidade serve mais ou menos como um nivelador por baixo, posto que o coloca em estatura semelhante à de Glauber Rocha e outros "gênios" bastardos da nossa cultura.  É como comparar Lima Barreto e José de Alencar, ambos também considerados membros dessa casta sagrada. Não, Walter Hugo não merece isso. Sem dúvida era muito talentoso, mas só transformou suas habilidades em produtos (em sua maior parte) bem-sucedidos. Reneguemos essa herança ideológica maldita do Romantismo. 

Por outro lado, Walter Hugo Khouri era, sem dúvida, bom demais para um país que não valoriza nenhuma das qualidades típicas da sua obra. Entretanto, preferiu ficar. Acabou gênio, maldito e ignorado pelas novas gerações. Tudo cabendo como uma luva na nossa exótica lógica do fracasso. Pobre dele.

O Cineclube 24 Quadros organiza e promove nesse mês de março uma mostra dedicada a Walter Hugo Khouri. Acompanhem no blog.

Comentários

  1. Meu, que texto incrível, perdi o fôlego em vários trechos. Não digo que concordo com tudo, mas é sim um ponto de vista mt bem argumentado, que sacudiu algumas ideias aqui...

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