EU – Walter Hugo Khouri em Grande Estilo

Segundo filme de uma quadrilogia iniciada com Eros, o Deus do Amor (1981) e uma das obras da maturidade artística de Walter Hugo Khouri, Eu será exibido nessa sexta-feira, dentro da programação da mostra O Cinema Segundo Walter Hugo, organizada e promovida pelo Grupo 24 Quadros durante o mês de março
 




Tarcísio Meira e Monique Lafond no encantador Eu (1987), de Walter Hugo Khouri: cinema com estilo, não pretensioso e nem maneirista. Na medida certa
 
Por Gabriel Petter

Um milionário coroa e charmoso, chamado (não casualmente) Marcelo, desperta, após mais uma noite mal dormida em sua enorme cama de sultão. Uma menininha, que logo se percebe ser sua filha, aparece na porta do quarto, e lhe volta um sorriso meigo. O rosto de Marcelo se ilumina. A pequena se aproxima. Senta-se na cama. Acaricia o pé grande do pai, enquanto aperta os olhinhos perdidos entre as bochechas rechonchudas. 

Tudo terno e comum não fosse a conotação sexual que o efeito Kuleschov dos insistentes planos do rosto sorridente da menina e da sua mão acariciando o pé do pai desperta no expectador. Logo fica claro que há algo mais naquela relação que um simples e desinteressado amor filial. 

Entretanto, em nenhum momento isso é tratado como notícia de imprensa marrom. Nem poderia. Estamos falando de Walter Hugo Khouri, o homem que sabia tratar as perversões humanas como matéria-prima da sua obra marcadamente fina e sofisticada. E isso nada tem a ver com grã-finagens ou idiotices do gênero. Tudo em Walter é muito chic, mas nunca esnobe. Apenas faz parte do universo de verossimilhança de algumas das suas personagens principais, pessoas que, na falta de preocupações econômicas, voltam suas energias a problemas não imediatos, nem por isso menos fundamentais. O bon vivant Marcelo de Eros, o Deus do Amor (1981), primeiro título de uma quadrilogia concluída apenas em 1991, tal um conde Drácula burguês e paulistano, buscava a mulher ideal, a única que amara (platonicamente, na infância) em toda a sua vida e que se despedaçara nas várias amantes que ele tivera ao longo das suas frustrantes experiências amorosas - reais. Uma voz sem corpo, um ególatra com ares de cínico tentando desesperadamente dissimular a própria fragilidade e tristeza.

Já o Marcelo de Eu (1987) ganha o rosto nem tão jovem, nem tão belo de Tarcísio Meira, sem dúvida o protótipo do macho alfa da época em que ainda não era sexy homem fazer chapinha no cabelo e usar roupas ultra apertadas. O caráter é o mesmo, salvo a centralidade do desejo incestuoso, apenas sugerido em Eros, o Deus do Amor, quase como uma tirada bem-humorada contra o moralismo da sua filha, dessa vez assumido sem maior pudor. Marcelo se cerca de mulheres, algo que se espera de um homem heterossexual na sua condição. Nenhuma o satisfaz. Só Berenice (Bia Seidl), aquela que ele sempre amou, desde que ela ainda nem viera ao mundo. 

Bizarro? Sim. Politicamente incorreto? Aí já é pergunta retórica. É provável que este não seja um dos filmes mais bem resolvidos de Walter Hugo - a sensação é que poderia ter saído muito mais limonada daqueles limões,  mas é patente que esta é uma típica obra de um artista que chegou a um ponto da própria carreira onde é possível se distinguir inequivocamente sua identidade. Os elementos fundamentais da maior parte da impecável filmografia de Hugo lá estão: personagens fascinantes e angustiadas, uma horda de mulheres estonteantes - destaque para Monique Evans, em sua primeira aparição no cinema - e um enredo de fundo filosófico e psicológico. Além, claro, das finérrimas trilhas musicais, entremeadas por temas compostos por músicos do quilate de Rogério Duprat e Júlio Medaglia, fora os inúmeros standards jazzísticos executados pela Traditional Jazz Band ou saídos diretamente de gravações originais.

Entretanto, isso não significa que o realizador tenha se acomodado no maneirismo. Muitíssimo pelo contrário. Não obstante a falta da força criativa de Eros, Eu é o tipo de filme que nos passa a sensação de coisa única, mesmo para quem conhece a obra de Walter Hugo. Uma estória difícil, sim, às vezes dando mais voltas do que o novelo pode suportar, mas longe de ser insuportável. Safo e talentoso como era, Walter sabia, a essa altura da sua trajetória na sétima arte, que poderia fazer o que quisesse com o que tinha à disposição. E quase sempre teve muito, mesmo para os tímidos padrões do cinema brasileiro. Se teve menos público do que merecia, este lhe era fiel. E, mesmo podendo, não se repetiu, tal como colegas geniais do porte de Woody Allen, que nos últimos anos vem apresentando caldo requentado de décadas atrás. Quem, com vinte cinco longas, pode se dar a esse luxo?

Eu, mais do que um filme, é a marca registrada de um estilo único de se fazer cinema num país que considera cultura uma frescura, que confunde luxo com ostentação e cinema autoral com intelectualismos pedantes de orelha de livro. Um trabalho bem mais simples do que a maioria pode admitir. Porque a maioria do público não pode admitir que as coisas simples são as melhores. 

Eu será exibido nessa sexta-feira, dia 21 de março de 2014, na Vila das Artes, dentro da mostra O Cinema Segundo Walter Hugo. A sessão é gratuita. 

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