NOITE VAZIA (Ou: Porque Filme bom é Execrado no Brasil?)


A obra-prima de Walter Hugo Khouri será orgulhosamente exibida pelo Grupo 24 Quadros, abrindo a mostra dedicada a um dos mais talentosos cineastas nacionais de todos os tempos. Noite Vazia é uma expressão da angústia existêncial do homem moderno, cujos ideais amiúde coincidem com os valores propagados por um sistema que tem como finalidade primordial a sua própria preservação. Com excelente qualidade técnico-artística o longa, juntamente com outras boas películas da mesma época, compõe um grupo à parte na cinematografia brasileira dos anos 1960, então contaminada pela visão pequeno-burguesa de cinema enquanto instrumento de transformação socioeconômica, o que gerou boa parte das bombas do Cinema Novo e afins que, malgrado esse fato, conquistaram legiões de seguidores. Por que será que boas escolas cinematográficas não vingam no Brasil? 

 Norma Bengel e Gabrielle Tinti no extraordinário NOITE VAZIA (1964), a obra-prima do diretor Walter Hugo Khouri


Por Gabriel Petter 

A São de Paulo de 1964 já era a cidade gigantesca que conhecemos atualmente, símbolo nacional do que certos economistas chamam de subdesenvolvimento industrializado. Fracionado entre as tensões típicas de uma economia capitalista tardia, o homem moderno no mundo periférico do sistema econômico internacional – nessa época, sobretudo o paulistano, em termos de Brasil, compartilhava certos problemas similares aos do seu congênere do mundo “desenvolvido”, que enfrentava a alienação de si próprio e o sentimento de vazio que lhe lembrava recorrentemente que o mundo  mal saíra de um conflito fratricida responsável por milhões de mortes, o que se traduziu em escolas filosóficas como o Existencialismo, em movimentos cinematográficos como o Neo Realismo e a Nouvelle Vague, entre outras expressões de um mundo que não era tão colorido quanto a propaganda de cores saturadas do American Way of Life poderia fazer supor. 

No Brasil, quanto menos! Aliás, 1964 foi o ano culminante da sucessão de crises que resultaram no Golpe Militar e no desmantelamento da ação de forças políticas populares que, grosso modo, procuravam romper com séculos de dominação exclusiva da fração da elite político-econômica interessada na manutenção do nosso sistema socioeconômico colonial. Um dos mais impressionantes produtos cinematográficos desse período turbulento do nosso país foi o perturbador Noite Vazia (BRA, 1964), de Walter Hugo Khouri. Impressionante porque, para quem conhece o cinema brasileiro apenas da "retomada" para cá, fica difícil imaginar que nestas plagas já tenha sido possível realizar um produto tão sofisticado, mesmo com todas as limitações de tal empreendimento em terras tupiniquins. Mais impressionante ainda porque, a despeito de tamanha qualidade, não fez escola. Walter Hugo, na visão demagógica de certos pensadores de cinema que nunca pisaram em sets de filmagem e de aspirantes a cineasta que pretendiam usar a sétima arte como meio para exercitar má filosofia política era um "entreguista" - para usar um dos chavões idiotas do pensamento político brasileiro sessentista -, mero copiador de cineastas europeus. Em suma: Walter incomodava porque seus filmes eram bons e bem-feitos, não sendo o resultado de uma ideia fumacenta na cabeça com uma câmera tremelicante nas mãos.


Walter Hugo Khouri e Odete Lara nos bastidores de Noite Vazia, nos estúdios da Vera Cruz, arrendados pelo cineasta. 


Imagine então o escândalo que não foi para a nossa intrépida classe cinemanovista - que era contra o cinema industrial, preferindo verbas públicas a fundo perdido para seus constantes fracassos de público - que o enredo do longa fosse centrado em dois anti-heróis da alta burguesia paulistana! E, para piorar, um desses ainda era o gatão Gabrielle Tinti (1932-1991), astro italiano que participou do longa por conta do seu envolvimento com a estonteante Norma Bengell daquele tempo (1935-2013), com quem viria a se casar durante as filmagens. Gabrielle teria antagonista feminina à altura, na pele e no olhar sex de Odete Lara (atualmente com 84 anos e graves problemas de saúde), ex-modelo que participou do primeiro desfile da história da moda brasileira, passou pela Tupi, pelo Teatro Brasileiro de Comédia, chegando ao cinema (estreando ao lado de Mazzaropi) e caindo nas graças de Walter, notório escalador de seletíssimo cast feminino.

Mas a beleza não é o fundamental nessa pequena joia rara do cinema brasileiro. Noite Vazia não é um filme de compensações. À beleza das personagens principais - excluso o feioso Mario Benvenutti (1926-1993), o mais velho do elenco - soma-se a fotografia, usando com muita propriedade o preto e o branco, a música de arranjos econômicos de Rogério Duprat - primo de Walter e colaborador em quase todos os filmes do parente cineasta - e o roteiro que, não obstante as acusações (improcedentes) de ser insípido e arrastado, de certa forma cumpre a função que deveria ser dos atores, isto é, gerar o clima de tensão subjacente à relação sui generis entre as personagens, algo na fronteira entre o sexo descompromissado, a amizade e a vaga insinuação de afeto e amor.

Sim, as personagens são simples, quiçá "maniqueístas" - para usar outro jargão caro à geração 1960 - e é fácil saber quais são as funções que cada uma cumpre na trama. Luis (Benvenutti) e Nelson (Tinti), dois jovens ricaços paulistanos (um, casado, outro, saindo de mais um namoro mal-sucedido), procuram evasão da rotina massacrante no esporte preferido de homens na sua condição: a caça à mulheres na agitada noite da capital econômica do país. Após rodarem por bares e boates deprimentes, os rapazes encontram duas prostitutas: Mara (Bengell) e Regina (Lara) e resolvem levá-las ao apartamento que Luis costuma usar para suas farras com mulheres. O playboy encarna o tipo cafajeste e cínico, como há de convir a um quase quarentão que tem consciência que muitas das suas "conquistas" femininas podem ser creditadas ao poder do dinheiro. Nelson, mais jovem e bonito, parece não estar muito à vontade nesse jogo de sedução banal e alimenta uma espécie de angústia muda que o liga, efêmeramente, à Mara, que aparentemente nutre a ilusão de um relacionamento improvável. Regina é tão cínica quanto Luís, e parece ter prazer em jogar com o desejo do cliente, procurando, sempre que possível, jogar-lhe na cara sua insignificância enquanto homem, confrontando-o sempre, algumas vezes sobressaindo, em outras, sendo cruelmente humilhada.


 Sequência na qual os casais se divertem assistindo à projeção de filmes pornôs. O auge do tédio de uma noite vazia

É no interior desse luxuoso apartamento, onde o sexo de péssima qualidade se mistura ao tédio dominante, que se desenrola a trama que promete muito mais do que realmente pode dar. Não há saída. As personagens estão condenadas tanto a existir quanto a permanecerem presas numa dinâmica de falsas promessas e possibilidades nunca realizadas. As próprias fantasias, incluso a sequência de lesbianismo - escândalo para a época - se revestem de convencionalismo, como se fossem brincadeirinhas pecaminosas permitidas nos limites da permissividade socialmente aceitável. O que "há" mesmo sempre subjaz, como um id reprimido, pronto a irromper como um vulcão a qualquer momento. O problema é que esse momento pode cumprir a escala de tempo geológico e não chegar nunca a ser visto em nossa breve passagem por este planeta. Imagine então no espaço limitado de uma película.

Noite vazia é cinema em estado puro, quando não é preciso alguém explicar o ininteligível a desfilar no écran. É pura sensação, despertada pela direção inteligente de Khouri, que não precisava ser salvo por atores - repare que seus elencos, normalmente, são até fraquinhos -, produtores, fotógrafos ou outros membros da equipe para levar suas ideias a termo. Poucos são os que conseguem se dar a esse luxo no cinema mundial, dispensando até burocratas do pensamento prontos a avaliar esta ou aquela obra segundo critérios estranhos à recepção de produções audiovisuais. Entretanto, infelizmente, poucos são capazes de perceber tal valor intrínseco às obras cinematográficas. Brasileiros em geral, notórios pela falta de hábito de leitura, também não cultivam a cinefilia, sendo incapazes, destarte, de perceber o sentido profundo de um filme com F maiúsculo. Nesse contexto, vale parafrasear o dito popular: "Em terra de cego quem parece enxergar é rei." Nossos críticos e professores universitários de plantão, que se julgam a "antena da raça", erigiram o Cinema Novo como modelo de cinema "nacional", por meio de índices filosóficos, históricos, antropológicos etc. Só esqueceram de algo fundamental: filmes existem para ser fruídos. Se o público não consegue entendê-los e nem gostar deles, é melhor considerar a lata do lixo. Mas nada é tão racional no Brasil. Por aqui, cinema é uma espécie de distintivo social. Walter Hugo, que queria, antes de tudo, trabalhar e viver de cinema, não poderia mesmo deixar herdeiros por aqui. Pena para as novas gerações; ótimo para os cultivadores da mediocridade. Em termos de cinema tupiniquim, estes não têm do que reclamar.

Noite Vazia será exibido nessa sexta-feira, dia 7 de março de 2014, a partir das 18h30min, na Vila das Artes, abrindo a mostra dedicada ao diretor paulistano Walter Hugo Khouri.

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