A DAMA DO CINE SHANGHAI: MISTÉRIOS NA BOCA DO LIXO


Um exercício de metalinguagem, contando uma história com muita dose de suspense, erotismo e referências cinematográficas. Assim pode ser definido o filme mais famoso do cineasta paulista Guilherme de Almeida Prado, intitulado A Dama do Cine Shanghai. Realizado no período crítico da Embrafilme, no final dos anos 80, que culminaria com seu fechamento durante os terríveis anos Collor, essa obra arrebatou milhares de prêmios no Festival de Gramado de 1988, incluindo melhor filme e direção.


 Cartaz do filme: um tributo ao noir e à Boca do Lixo.

Ambientado em uma São Paulo tipicamente decadente, com seu universo de drogas, violência, homossexualismo, prostituição e hipocrisia social, esse clássico tupiniquim que ficou famoso nos anos 90 ao ser divulgado incessantemente na extinta Rede Manchete, é na sua essência uma grande homenagem ao chamado cinema da Boca do Lixo e seus folclóricos personagens. Para começar a direção é assinada por um grande militante do movimento. Guilherme de Almeida Prado trabalhou ao lado do Rei da Pornochanchada David Cardoso e do gênio maldito José Mojica Marins, além de produzir algumas pérolas esquecidas da cinematografia nacional, como Perfume de Gardênia (1992) e Onde Andará Dulce Veiga (2007), uma adaptação do conto mais conhecido do mítico escritor Caio Fernando Abreu. Além do cineasta, temos a presença de figuras fundamentais para entender o universo Boca do Lixo, como Paulo Villaça (imortalizado no papel de O Bandido da Luz Vermelha), em uma de suas últimas atuações; a  icônica atriz  Matilde Mastrangi e o subestimado chinês John Doo, que trabalhou em diversas produções, como diretor, roteirista e ator,  tendo seu papel mais marcante no episódio O pasteleiro ( do filme Aqui, Tarados; uma verdadeira relíquia do horror brasileiro).

O clima noir também é exaltado a cada momento, visto que a história é totalmente inspirada nos romances e filmes pulp da década de 40, com seus personagens obscuros, sendo auxiliado nesse processo pela sublime fotografia de José Roberto Eliezer, que assinou também Cidade Oculta (1986) e Anjos da Noite (1987), formando o que muitos críticos chamam de trilogia da noite paulistana.  Outro aspecto interessante é a homenagem explícita a filmes como Janela Indiscreta (1954), de Alfred Hitchcock, A Rosa Púrpura do Cairo (1985), de Woody Allen, além é claro, de A Dama de Shangai (1948), de Orson Welles.

O enredo nos leva a um suspense tipicamente policialesco, envolvendo um corretor de imóveis que se apaixona por uma sexy femme fatale casada (a partir de um encontro em uma sala de cinema), que juntos se envolvem em uma trama bizarra, excitante e surreal, onde a realidade e a ilusão se confrontam a cada momento, levando o expectador a vários questionamentos, inclusive em relação ao ambíguo final.

O elenco encabeçado pelos atores globais Antônio Fagundes e Maitê Proença (no auge da beleza), não comprometem a trama, apesar de alguns diálogos desnecessários e um roteiro falho em algumas situações. Destaque também para a presença dos veteranos atores Jorge Dória, Sérgio Mamberti e José Lewgoy (nosso eterno vilão cinematográfico), além da boa caracterização de Miguel Falabella como um travesti. A trilha sonora recheada de jazz e uma pitada de MPB consegue dar um ritmo nostálgico e enigmático ao filme, e a direção de arte se mostra bastante competente, ao utilizar um estiloso cenário teatral com cores fortes e chapadas.


 Os protagonistas Antônio Fagundes e Maitê Proença: o trouxa e a mulher fatal.


Marcando um fim de um ciclo para o cinema brasileiro e uma das poucas tentativas de se fazer um metacinema tupiniquim, A Dama do Cine Shanghai, merece ser resgatado das prateleiras, para compreendermos um período pouco lembrado, mas de importância decisiva para evolução da nossa arte fílmica.

Pierre Grangeiro

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